Sorte é para os lerdos

O homem entrou na casa lotérica bufando. Havia seis pessoas na fila, número até baixo para aquele meio de dia. Seis pessoas, contudo, eram suficientes para encher a pequena loja e o homem, após tentar ser atendido antes, teve de esperar na calçada. Seis pessoas numa casa lotérica também eram suficientes para fazer o relógio andar: todos ali aproveitavam o horário de almoço para colocar as contas em dia. A cada boleto que aquela velhinha tirava da bolsa, o furioso homem (que, agora, meia hora mais tarde, já era o primeiro da fila) ficava um passo mais perto de ter um infarto. Não o teve, porém. A senhora pagou as contas água, luz, telefone, TV a cabo, internet e a fatura do cartão de crédito e sorriu para o homem que, ignorando-a, avançava alvoroçado para o caixa.

A atendente, sabendo que tinha sobrado para ela o cliente problemático, suspirou e forçou um sorriso:

– Pois não, cavalheiro?

– Até que enfim! Eu queria fazer uma reclamação!

– Ah, sim? Por favor, prossiga.

– Na sexta-feira eu vim aqui e a senhorita me ofereceu para jogar na Sena acumulada.

– Sim, senhor – a atendente começou a se lembrar do caso. Lembrava-se, no entanto, de um homem mais simpático.

– Pois é... A senhorita me mandou escolher seis números e pagar dois reais e disse que eu só tinha que fazer isso para me tornar milionário!

– Senhor, é nisso que se baseia o jogo. O senhor pode estar conferindo o resultado ali no quadro.

– Esse é o problema – o homem elevou o tom de voz – Os números mostrados não são o que escolhi!

– Nesse caso, senhor, sinto muito. Mais sorte na próxima vez...

– Não me venha com essa! A senhorita disse claramente: “O senhor escolhe aqui os números que sairão e ganha se eles aparecerem no resultado”. Eu escolhi os números e paguei! Por que diabos eles não estão no resultado?!

A moça olhou perplexa para o homem. Ficou em silêncio por alguns segundos por não saber o que dizer. Pensou até que fosse uma piada, mas ao tentar esboçar um sorriso, viu que o homem fechou ainda mais a cara. Decidiu se controlar e tentar explicar ao homem os fundamentos do jogo:

– O senhor não compreendeu bem o jogo...

– Claro que não! A senhorita não me explicou direito! Queria apenas vender seu precioso bilhete de loteria!

– Senhor, por favor acalme-se...

– Não me acalmo! Eu paguei para os meus números serem escolhidos e eles não foram! Isso é propaganda enganosa!

– Senhor, não é assim. Você escolhe os números que acha que serão sorteados. Seis números vão estar sendo sorteados e, se o senhor acertá-los, o senhor leva o prêmio. O senhor nem precisa acertar os seis para levar algum prêmio.

– E como eu vou saber que números serão sorteados?!

– O senhor não vai. É um jogo de sorte!

– Pois para mim é um jogo de azar! Você disse que eu posso acertar menos números e ganhar prêmio. Eu acertei um número!

– Um não ganha prêmio, senhor. Apenas quatro, cinco e seis números.

– Olha aí a falcatrua de novo! Assim é muito difícil! Quero reembolso dessa enganação!

– Isso não estará sendo possível.

– Então eu estarei chamando a polícia agora – ironizou o homem já apanhando o celular.

O gerente da lotérica que já observava o ocorrido estremeceu: fazia também o jogo do bicho e, naquele dia, não tinha escondido as provas de seu crime fiscal. Correu para o caixa e cochichou para a jovem, incipiente e confusa atendente. A moça olhou surpresa para o patrão e, em seguida, virou-se para seu insatisfeito cliente com um largo sorriso:

– Senhor, no lugar do reembolso eu posso estar oferecendo um jogo diferente, mais fácil.

– Lá vem você de novo... Que jogo?

– Essas raspadinhas...

– Raspadinha? Que droga é essa? Como eu ganho?

– Tudo que o senhor tem que fazer é raspar e...

– Ah, é só isso? Me dá então!

– NÃO! Espere senhor... Para ganhar o senhor tem que tirar o mesmo valor três vezes.

– Já está complicando!

– Senhor, estou apenas explicando direitinho, para não haver mais mal-entendidos.

– Ok, ok... Quantas dessas raspadinhas a senhorita vai me dar?

– O senhor pagou dois reais. Posso te dar quatro, tudo bem?

– Sim... Tudo bem... É aqui nessa parte cinza que eu raspo?

Diante da resposta afirmativa da moça do caixa houve júbilo em toda a casa lotérica. A fila crescia e as pessoas se irritavam com o problemático homem que insistia em reclamar um direito que ninguém tinha. Alguns riam, mas, frente à espera, era impossível manter o bom humor. A primeira da fila, uma mulher, se apressou em tomar o lugar do homem, mas teve de recuar antes de dar dois passos inteiros: o homem não se mexeu. Não queria enfrentar fila de novo e ia fazer as raspadinhas ali mesmo, diante da atendente, para o caso de algum problema.

Começaram os gritos e os xingos e o próprio gerente teve de abrir um terceiro guichê para não ter problema com o homem que, mesmo sem ter razão nenhuma, traria problemas só por pensar que a tinha. O homem terminou de raspar e pediu uma calculadora. Fez alguns cálculos e entregou as fichas para a atendente já entediada:

– A senhorita me deve trinta e um mil, cento e vinte sete reais e setenta e cinco centavos – disse sorrindo. A moça se assustou, pois não havia aquele valor nas raspadinhas. Estremeceu ao pegar as cartelas e pôs-se a conferir:

– Senhor, você só ganhou cinquenta centavos – disse suspirando.

– Como assim?! Você disse que eu ganhava os valores que se repetissem três vezes!

– Mas, senhor...

– Olha só: nessa cartela tem duas vezes o vinte mil reais e nessa outra tem outro vinte mil; nessa também tem um dez mil, outro nessa e nessa. Nessa aqui tem o cem reais duas vezes e nessa tem a terceira; nessas três tem um mil reais e um vinte e cinco reais em cada uma. Nessas duas tem dois um real em cada e, nessas duas, um em cada, dando um total de seis um real. Nessas três aparecem o vinte e cinco centavos e nessa aqui tem três vezes o cinquenta centavos.

– Senhor, o valor tem que aparecer três vezes na mesma cartela!

– Mas a senhorita não me disse isso!

– Ai, meu Deus! O senhor quer seus cinquenta centavos em dinheiro ou quer outra raspadinha?

– O quê? Eu quero meus trinta e um mil, cento e vinte sete reais e setenta e cinco centavos!

– Senhor isso não existe – exclamou a moça já irritada – O senhor não tinha direito nem a essas raspadinhas que eu dei ao senhor!

– Isso é um absurdo! Uma enganação!

A atendente apanhou outra cartela de raspadinha e colocou no balcão com um tapa:

– Toma! Raspa!

O homem olhou abismado para a atendente, apanhou a cartela da raspadinha e saiu da lotérica batendo perna, para alegria geral. O gerente suspirou aliviado, a atendente finalmente pôde ir almoçar e a fila voltou a andar normalmente.

Na calçada, do outro lado da rua, o homem passou por outro que estava encostado na parede:

– Vamos...

– Conseguiu?

– Consegui. Tive o reembolso do bilhete da Sena e ainda ganhei uma raspadinha...

– Sério?

– Sim, sim... E olha: tá premiada! Ganhei dez mil reais!

Samuel C Bernardes
Enviado por Samuel C Bernardes em 06/01/2011
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