A HIPOCONDRÍACA DA BULA

Vez ou outra o doutor João se vê às voltas duma boa história para contar,todavia, não seria esta a das melhores, posto que ele jamais a contaria a alguém , claro, decerto que lhe faria bufar de desolação, afora o risco de obstrução aguda de suas castigadas coronárias.

Não sei não, deve ser por essas e outras que tanto médico anda infartando por aí...com tantas donas "Marias dos Remédios" por esse mundo afora, para quem não há remédio algum.

Recentemente ela, uma antiga paciente hipocondríaca, o levou às raias da loucura e dessa história eu fui testemunha auditiva e ocular.

Pode até parecer sacrilégio, afinal, médico faz juramento e juramento não pode ser abandonado, imagina, tem que ser cumprido na íntegra.

Porém, conhecendo a abnegação daquele doutor João é que afirmo com toda convicção deste mundo que até juramento de médico tem lá o seu limite.

Foi assim que naquele final de dia ele atendeu aquela senhorinha idosa, a da doença "refratária", não a doença hipertensiva mas a doença hipocondria, imune a qualquer tipo de remédio, embora fossem os tantos medicamentos parte integrante do seu nome composto e também das inumeras tentativas de receitas do doutor João:

-Dona Maria dos Remédios , deu certo a medicação desta vez? Mediu sua pressão arterial neste intervalo das consultas?

-Minha doença é incurável doutor, ela não aceita remédio algum. O senhor já sabe disso há dez anos, então por que sempre me pergunta a mesma coisa? Para mim remédio é só no nome!

-Mas dona Maria, não é bem assim, tem que tomar seu remédio para melhorar o controle da pressão, há dez anos lhe explico isso.

-Remédio faz mal doutor, não adianta me enganar, não. Eu não posso tomar remédios. Meu organismo não os aceita, tenho todos os efeitos colaterais das bulas! Para mim remédio é só no nome, já lhe disse!

-Já falei para jogar as bulas fora, dona Maria! Não é para ler bula nenhuma! Está proibida de tocar nas bulas!

-Com não, doutor, quer que eu morra sem saber o porquê? Se o primeiro me deu tonturas, o segundo batedeira, o terceiro boca seca, no quarto quase desmaiei...e ainda quer que eu não leia as bulas?

-Então vamos ver, vamos tentar um medicamento mais "natural", certo?-tentou daquela vez o doutor João a continuar- a senhora não pode ficar com a pressão alta desse jeito, é mais perigoso do que tomar remédios...

-Tá vendo doutor, até o senhor já admite que remédio é perigoso! E quer receitá-los justo para mim? Isso não está certo doutor. E tem mais, remédio natural também tem efeito colateral, pensa que não sei?

Já li as bulas todas na Internet!

- Dona Maria dos Remédios, pelo amor de Deus...não tenho todo o tempo do mundo para lhe convencer a se tratar!

-É sua obrigação doutor, jurou para isso, para tratar os doentes muito doentes como eu! Ou não sabe tratar meu caso, doutor?

-É isso Dona Maria, não sei tratar a senhora sem remédios, pronto. Eu desisto da senhora, pode procurar outro médico!

-E eu doutor, não sei sarar com remédios. Desse jeito eu é que vou desistir do senhor, e o seu juramento terá sido em vão!

Naquele dia tive a impressão de que tudo que o doutor João queria era que dona Maria dos Remédios arranjasse só um de seus remedinhos para o coração dele...arrependido que estava de um dia ter jurado algo, ainda que fosse pela nobre causa dos hipocondríacos.

"Tem coisa que a gente jura sem pensar..."deve ter concluído o doutor João.

Decerto que ele engoliria qualquer pílula e nem leria a bula, só para se ver longe da dona Maria dos Remédios, afinal, riscos são inerentes a todos os remédios e a todas as profissões, com ou sem juramento.

E depois, convenhamos, tem algumas "donas Marias" que são mais perigosas que todos os remédios juntos.

Nota: Verídico.