As aventuras de Tonico _1_O herói da turma 41
Liceu Maranhense, 1961. Antonio, um dos mais brilhantes alunos da turma 41, da 4ª série ginasial, era, entretanto, um capeta profissional, terror dos circunspectos professores e do secretário-geral do tradicional e severo educandário maranhense. Tanto que, quando algo acontecia de anormal – uma bombinha de São João que explodia, uma vidraça quebrada, uma mijada no corredor - o secretário ia nas salas onde estudavam os mais perversos alunos – e, portanto, os mais suspeitos – e os convocava:
- Antonio, Fulano e Sicrano, venham comigo até a Diretoria!
- Mas não fizemos nada, Seu Nélio!
- Não acredito! Toda sacanagem, toda coisa errada que acontece neste colégio tem que partir de um de vocês! Venham, venham, não se façam de santinhos!...
Na turma 41 os professores de Antonio tinham um problemão: o adolescente era realmente insuportável. Jogava bolas de papel e aviõezinhos quando os professores viravam as costas, e sentava-se lá nas últimas carteiras da turma onde, de vez em quando, desatava em estridentes gargalhadas. No entanto, o diabo não é tão feio quanto se pinta, e Antonio tinha uma inteligência e memória realmente privilegiadas e, além disso, levava muito a sério os seus estudos, de modo que, apesar de ser “um cão chupando manga” naquele colégio, os professores não tinham nenhuma chance de se vingarem do detestável e irritante aluno. Mas sempre esperavam uma oportunidade para uma desforra e por isso Antonio se cuidava, estudando duramente nos momentos em que não estava arranjando algo para aporrinhar os outros.
Ficaram célebres as “armações” de Antonio no Liceu Maranhense. Numa delas, ele foi o responsável pela fratura do pé direito de um aluno de outra turma. Era muito comum, nesse tempo, as peladas com bola de meia. Pegava-se uma meia comprida de mulher, recheava-se de pano na quantidade certa, dobrava-se a meia e fechava-se com uma fileira de fios entrecruzados - o chamado “cu de pinto” - e, pronto, nascia ali uma bola para as peladas de futebol...
Antonio chegou um dia ao colégio com uma bonita bola de meia. Guardou-a na sacola e quando terminaram as aulas foi para um campinho de futebol que havia nos fundos do colégio. Colocou a bola num montinho de areia, na marca do pênalti, postou-se no gol e ficou esperando por um otário. Um negão alto e forte, que vivia doido para arrebentar Antonio de porrada, aproximou-se:
- Que é que tu estás fazendo aí, cara?
- Estou esperando um cara bom de chute para marcar um gol em mim. Sou o melhor goleiro do Liceu!
- Quer apostar?
- Quero. Quinhentos réis para ti por cada gol marcado, quinhentos réis para mim por cada chute teu perdido.
- Fechado!
Antonio postou-se, fingidamente alerta, no meio do gol, o negão tomou distância, correu para bola e meteu o pé. A bola saiu fraca, chocha, mas o negão deu um berro horrível. Tinha quebrado o pé! Foi um rebuliço dos diabos no colégio, levaram Antonio e a bola para a Secretaria, e lá descobriram que, em vez de pano, Antonio recheara a bola com uma pedra! Antonio pegou uma suspensão de oito dias e passou muito tempo se escondendo do negão que jurara arrancar-lhe a pele!
No começo da década de 60, não era muito comum as moças usarem calças compridas, de modo que, quase sempre, estavam de saias. Isso era uma beleza para Antonio que, munido de vários alfinetes de pressão, esgueirava-se por baixo das carteiras e emendava as saias das colegas, de duas em duas. Quando tocava a sirene do fim da aula e elas se levantavam de repente, era um horror!
E as sirenes, anunciando o fim das aulas, que tocavam trinta minutos antes da hora marcada, estranhamente quando Antonio estava fora da sala de aula? E as suas imitações de Elvis Presley e Chubby Checker, em cima da mesa do professor? E os versinhos pornográficos que deixava na mesa das colegas?
Mas um dia, Antonio foi o herói da turma...
As provas, nesse tempo, tanto mensais como semestrais, eram orais e escritas. O professor relacionava os conteúdos das matérias para os alunos estudarem e nos dias das provas esses conteúdos numerados eram sorteados. Se era prova escrita, o conteúdo era sorteado por um aluno e valia para a turma toda; se era prova oral, cada aluno sorteava o seu próprio conteúdo, de uma caixinha na mesa do professor, e, então, ou deveria ir ao quadro negro fazer a exposição do conteúdo sorteado ou deveria dissertá-lo em voz alta para o professor.
O professor de História Geral era o professor Coutinho, já beirando os setenta, um bocado surdo, e o dia em que Antonio se tornou um herói foi o dia da prova mensal de História Geral.
Começa a prova e chega a vez de Antonio:
- Número 3!
- Sim, senhor! – respondeu Antonio.
- Ah, o senhor, hein? Vejamos se é tão bom em História Geral quanto o é nas palhaçadas... Venha sortear o seu ponto!
Antonio aproximou-se sério, meteu a mão na caixinha e tirou um papelzinho dobrado, que entregou ao professor Coutinho. O professor leu e falou:
- O seu ponto sorteado é os Maias! Diga tudo o que sabe sobre os Maias, Antonio!
Antonio nem sequer pestanejou e começou:
- Os Maias são indígenas da América Central que habitam o México, a Guatemala, Honduras e São Salvador. Foram uma das....
Nesse momento, caiu a energia elétrica e a sala ficou totalmente às escuras. Os alunos começaram a assobiar e a gritar, mas o professor Coutinho berrou:
- Silêncio, silêncio, senão dou zero para todo mundo! A prova continua!
Os alunos aquietaram-se e o professor falou para Antonio:
- Continue, meu rapaz, a prova é oral, não tem nada a ver com energia elétrica. Fale, fale tudo sobre os Maias, estou ouvindo!
E Antonio continuou:
- Foram uma das civilizações mais cultas de toda a História, com grande destaque para a Arquitetura, Escultura, Cerâmica e Astronomia...
E Antonio continuou a falar sobre os Maias por mais alguns minutos, a energia elétrica retornou, e o professor Coutinho, a contragosto, convenceu-se de que ele sabia mesmo tudo sobre os Maias.
- Muito bem, tenho que reconhecer! Você é um peralta dos piores, mas estuda mesmo. Pode sentar-se!
De repente, os alunos começaram a rir e a cochichar, olhando para um ponto no quadro-negro, atrás do professor Coutinho. O professor virou-se e deu de cara com um enorme desenho feito a giz, representando uma vagina de mulher sendo penetrada por um pênis: o famoso triângulo, pontilhado de tracinhos nos lados, atravessado por um pênis com umas enormes bolas!
Ora, o professor Coutinho, além de velho ranzinza, era um fanático religioso, de costumes severos e puritanos. Deu um murro na mesa e berrou:
- Quem foi o safado que desenhou essa porcaria no quadro? Quem foi?
Todos permaneceram no mais absoluto silêncio.
- Ah, ninguém vai falar, não é? Ou aparece o autor dessa safadeza ou vamos ter problemas!
A turma toda continuou em silêncio.
- Como é, meus senhores, não vai aparecer o autor desse debochado desenho? Então, aviso: a turma toda vai ter zero em História Geral neste mês e no próximo. Zero em dois meses! A turma toda, ouviram?
A essa altura os alunos começaram a se entreolhar, preocupados, como a acusar-se mutuamente. Naqueles tempos bicudos de estudos e avaliações duríssimos, dois zeros seguidos numa matéria significavam quase uma reprovação.
Dois minutos se passaram e então Antonio levantou-se:
- Professor Coutinho, não posso prejudicar a turma toda. Fui eu quem fez o desenho, desculpe.
- Você? Não, não é possível! Durante todo o tempo você esteve ao meu lado, dissertando o seu ponto! Não se afastou de mim!
Pigarreou e olhou para Antonio com simpatia, quase ternura:
- Mas, que gesto bonito da sua parte! Pretendeu sacrificar-se para que a turma toda não fosse punida. Meu filho, esse seu gesto prova que você é um homem de fato!
E continuou, eloqüente:
- Que isso sirva de lição para o covarde autor desse sujo desenho e que ainda está caladinho! Não teve a hombridade de confessar a sua má ação e por causa disso você pretendeu sacrificar-se!
Antonio permanecia de cabeça baixa, com os olhos marejados, e a emoção tomou conta da sala. O professor Coutinho continuou:
- Peço-lhe desculpas, meu rapaz, por ter feito mau juízo de você. Talvez seja só um pouquinho travesso, mas é um homem com H maiúsculo. Por causa disso, você não fará provas nos dois meses que vêm, pois já lançarei dois dez para você. Peço uma salva de palmas para este rapaz, é um herói!
Houve a salva de palmas, o professor levantou-se da mesa, deu um forte abraço em Antonio e retirou-se, finalizando:
- Vou falar com o Diretor sobre este seu gesto! Você não é que nós pensávamos!
Quando o professor Coutinho saiu, os alunos fizeram algazarra em torno da mesa de Antonio:
- Porra, cara, valeu! Que legal, tu evitaste que a gente levasse dois zeros seguidos!
Um outro, mais exaltado, falou:
- Mas estou indignado! Não apareceu o miserável que fez o desenho!
Antonio, enxugando uma lágrima furtiva, falou filosoficamente:
- Um dia saberemos quem foi....
Quarenta e cinco anos depois posso confessar... Claro que fui eu mesmo quem fez o desenho pornográfico no quadro-negro! Na hora que faltou energia, eu corri, na pontinha do pé, para o quadro e comecei a fazer o desenho. Enquanto desenhava, eu dissertava, em tom mais alto. Depois, voltei rápida e silenciosamente para a mesa e continuei a dissertar. O professor Coutinho, bastante surdo, não percebeu que eu tinha me afastado do seu lado por um instantinho!...
Mas, de qualquer modo, eu fui um herói naquele dia...
São Luís - MA, 11/10/2006