Carta aos amigos
Caros amigos do Karatê,
Escrevo-lhes, finalmente, para atualizar minha situação em relação à recente crise de coluna que tive e da qual vou aos poucos me recuperando.
Para tranquiliza-los, prefiro iniciar contando a parte boa. Estou conseguindo fazer pequenas caminhadas com ajuda de um “anda-dor”(sacaram o humor?), um colete (ao qual voltarei mais tarde) e uma babá. Nenhuma Volta da Pampulha mas pelo menos me tira da cama e vai impedir que eu seja obrigado a ver certos programas cretinos como o Domingão do Faustão e o horário eleitoral gratuito.
A nota triste é que ainda não posso ficar livre dos remédios, mas pelo menos posso atualizar nossa lista para o Mauro, o Avelino (se um dia ele sair do leite de rosas) e nossos outros companheiros quarentões aos quais foi admitido, recentemente, nosso sensei. Segue lá para anotar, pelos nomes comerciais para facilitar:
Antiinflamatórios não esteróides: Arcoxia, Toragesic
Dor: Ultracet, Oxicontin
Antiinflamatórios esteróides: Disprospan injetável, Dexacitoneurim injetável. Suprema humilhação. Vem um cruzeirense todos dia sim e dia não me enfiar uma agulha na bunda e falar mau do Galo.
Mas tem ainda uma infiltração com corticóide que fiz no ponto da dor, sem resultado e ontem, para grande alívio, um bloqueio peridural com anestésico, corticóide e mais um analgésico. Isso me tirou da cama e permititu iniciar a carta.
Conforme advertido pelo médico, a dor voltou parcialmente, mas na quinta farei outro com resultado ainda melhor.
Até lá examino minhas perspectivas. Talvez as coisas se tornem um pouco engraçadas a partir daqui, mas dizem que o humor cura e quero fazer minha parte nesse processo.
Perspectiva um: O Homem Vitruviano
No consultório do médico tem uma grande cópia do desenho da da Vinci, mas ironia, na sala de espera só havia gente torta, muitos velhinhos artríticos e eu era o mais torto deles. Talvez ele esteja lá para mostrar o ideal do médico ou animar os pacientes, mas, para mim, o ideal é que houvesse na parede um enorme retrato da Torre de Pisa com seus escoramentos e sua inconfundível inclinação.
Perspectiva dois: Kata.
Como estava preocupado com este belo e vigoroso exercício do karatê, em que o homem pode vencer a si mesmo (o que comprovo na prática) perguntei ao colega se poderia pensar em voltar a fazer Kata.
Claro que a língua portuguesa tem suas armadilhas, ainda mais quando no nosso jeito mineiro de falar a pronuncia é a mesma da palavra japonesa que representa esses exercícios formais que nós, praticantes, buscamos aprender e aperfeiçoar. Cata, Kata, ínfima diferença.
- Poderá sim. Foi a resposta, mas...(sempre tem um mas). Só depois da fisioterapia e nada muito alto ou muito baixo.
Pensei logo no que poderia cata (Kata). Talvez latinhas para reciclagem nas lixeiras da PBH.
Me vi no futuro, jogando comida para os pombos na Praça da Liberdade.
Perspectiva três: Férias.
Como sabem, por imposição profissional, minhas férias são, geralmente, curtas. Já estou quase batendo o recorde só com atestado médico. Como falei que voltaria ao colete e busco algo a fazer, fantasiei algo que possível no momento.
Fosse o colete amarelo, eu poderia trabalhar como guardador voluntário de carros, afinal, eles não guardam nada mesmo. O problema, claro, seria na hora de sair correndo para recolher o dinheiro. A ideia de ficar em casa e tentar aproveitar o atestado me pareceu mais tentadora e isso me lembra da perícia.
No meu atestado médico estava escrito que devido ao quadro e a intensa dor eu não deveria sair da cama para perícias, mas mesmo assim o serviço do Estado, ao qual dedico já doze anos sem nenhuma falta e, acreditem ou não, com horas até sobrando, me obrigou a ir para comprovar a incapacidade. O triste disso tudo é que a palavra de um médico não vale mais nada, nem para outros médicos. Sofri para chegar à perícia, morri de dores, falei uns mil palavrões entre os dentes mas no final o perito me chamou, leu o papel do relatório, bateu um carimbo e me liberou. Mais mil palavrões para sair.
Não me restando outra alternativa, vamos à televisão. Estou assistindo um filme retrô. Chama-se Robo Cop. Não sei por que, mas estou me identificando muito com ele, embora ele me pareça um tanto mais ágil, talvez, por contar com os efeitos especiais de Holywood.
Perspectiva quatro (que talvez devesse ser a um): Passando ridículo
Não sendo a primeira vez que sinto dores, no primeiro dia, eu achava que, como das outras vezes, eu encontraria uma maneira de fazer tudo que eu precisava fazer sem ajuda. Dispensei a ajudante e só pedi à ela (providência divina), que deixasse a porta destrancada. Felizmente o inconsciente tem lá suas espertezas.
Ao passar pelo estreito corredor do closed, que liga meu quarto ao banheiro, fiquei literalmente agarrado, de quatro. Não ia para frente e nem para trás. Após alguns minutos rezando para “São Magaiver” me ajudar, sentindo que as lágrimas iriam descer (tom dramático na narrativa), liguei para o porteiro que veio me socorrer e me carregou. Graças a Deus não existe foto desse momento pois eu estava virado com a cabeça pro banheiro e o corredor era estreito. A dor nos libera de muitos preconceitos e pudores.
Naquela noite não houve banho, o xixi foi no marreco e cada espirro se fazia acompanhar de um grito. A dor ajuda quando podemos fugir, mas é péssima quando temos que deitar com ela como se fosse nossa amante.
O dia seguinte foi melhor. Consegui chegar no banheiro e minha esposa me deu banho. Seria sensual se não fosse tão acabrunhante. Mas pelo menos demos muitas risadas e latidos. Eu de quatro, cheio de dor e espuma, com aquela mulher maravilhosa do meu lado...é a vida!