Sem reflexo
Havia um rei déspota, extremamente cruel e vaidoso, que possuia um palácio repleto de espelhos. Um belo dia, tendo se recusado a receber o poderoso feiticeiro Mersen, o ditador passou a sofrer com uma terrível maldição:__O monarca tornou-se incapaz de ver a sua própria imagem refletida em espelhos! O fato tornava-se mais extraordinário porque estando o rei ao lado de outra pessoa de frente para o espelho, ele conseguia ver o reflexo do outro e não o seu próprio, sendo que a outra pessoa via o rei refletido.
Cientistas, religiosos, conselheiros de estado, autoridades e farsantes de toda espécie, não conseguiram resolver o enigma. Apenas Mersen não foi convocado. Para amenizar o problema, o rei determinou que deveria ter a aparência incessantemente elogiada. Para tanto, todo súdito, ao se dirigir ao rei deveria cumprimentá-lo e em seguida dizer o quanto o monarca era belo, mais belo que os deuses pagãos, tão maravilhoso quanto os anjos cristãos...Além disso, foi criado o cargo de bajulador real, um assessor encarregado de tecer rasgados elogios ao rei durante todo o tempo.
O tempo passou, na Europa começou a Renascença, e surgiram no país do rei vaidoso, três grandes pintores que foram convocados ao palácio, a fim de participar de um concurso: quem fizesse o melhor retrato do monarca, seria apadrinhado por ele, pois estava na moda ,entre os poderosos, a prática do mecenato. Os perdedores seriam expulsos ou mortos, dependendo do humor do rei.
Os artistas atenderam à convocação, uma vez que em ditaduras nem os artistas têm muita escolha. Lá chegando, principiaram a pintar o rei. Havia um júri, que não entendia nada de pintura, mas era muito influente no palácio, porque remanescente da inquisição. Terminados os trabalhos, o júri e o rei procederam à avaliação.
O primeira artista avaliado, doravante artista A, fez uma pintura extremamente realista, mostrando as rugas e os cabelos brancos dos reis, bem como os seus dentes podres. Resultado:A foi condenado a virar ração dos jacarés do palácio e a ter todos os seus quadros queimados.
O segundo artista, doravante chamado artista B, realizou um quadro que retratava um rei belo, forte e másculo, mas cujos pés esmagavam um mulher pobremente vestida com uma criança nas mãos. Era um trabalho de denúncia social. O rei inepto , gostou da obra, porém os seus conselheiros argumentaram que o autor era um subversivo. Resultado: B foi condenado à forca e seus quadros foram lançados à fogueira.
O terceiro artista, de agora em diante artista C, realizou um trabalho em que o rei aparecia belíssimo, rejunescido, iluminado, conduzindo o povo a um local maravilhoso, com muito verde e regado por um magnífico rio. O quadro foi unanimente aprovado e C passou a ser patrocinado pela Coroa, recebendo dinheiro suficiente para se manter e produzir as suas obras que se tornaram imortais. Como o monarca não se interessava muito por arte, C teve toda liberdade para criar obras que refletiam autonomia de pensamento. A e B também eram bons, mas se chocaram frontalmente com o poder e tiveram suas obras banidas e esquecidas.
Esta história é justa? Certamente não. Verdadeira? Creio que sim.