OS IDEAIS DE BRIAN
A coisa se passou num destes passeios que turistas estrangeiros fazem a morros do Rio de Janeiro para conhecerem o modo de vida de seus moradores.
Após subirem fazendo algumas paradas, eles chegam a parte mais elevada, onde podem gozar da deslumbrante vista da baia da Guanabara. Antes de iniciarem a descida, fazem uma pausa para lanche e descanso.
Neste local, existe uma grande mangueira de sombra convidativa, embaixo alguns bancos e, ao lado, um túmulo, simples montinho de terra, ladeado por uma velha cruz de madeira e um pé vadio de margarida comum.
Ao lado desta paisagem, um homem idoso, roupas simples e limpas, barba branca, porte e aparência da tradicional comissão de frente das melhores escolas de samba. Traje e postura que lhe emprestam ares de veneranda e sincera dignidade.
Compenetrado,varre em torno do jazigo.
Atraídos pela sombra e pelo cenário de palco, os turistas se aproximaram e viram que na cruz havia uma fotografia antiga de soldado e, numa plaqueta, com data remota, os seguintes dizeres: "Ao inesquecível Brian a eterna gratidão da comunidade tal pelo seu heroísmo, ensinamentos e nobres ideais".
Curiosos indagaram ao velho a razão da homenagem, mas como ele demonstrasse não compreender, foram em busca do guia, para a tradução.
Este, atento e antes de atender ao chamado, deixou a porta do micro-ônibus estrategicamente entreaberta e, discretamente, colocou o controle remoto do aparelho de som no bolso.
Com o guia ao seu lado, o velho iniciou a narrativa dizendo que Brian, a pessoa da foto, servira ao exército americano na base de Natal, Rio Grande do Norte, durante a segunda guerra mundial. Que fora pessoa altruísta, simpática, forte e muito valente.
Nessa ocasião ficara seu amigo e, como adorara o Brasil, ao término do conflito resolvera ficar por aqui e se instalar no Rio, exatamente no morro onde agora todos estavam e onde vivera por muitos anos praticando a filantropia e ministrando lições sobre liberdade e democracia.
Sempre morara no mesmo local onde jaz enterrado, gozando da maravilhosa paisagem e passando o tempo livre a cultivar margaridas amarelas que, segundo ele, tinham a cor que representava o sentimento da esperança que o homem sempre deve manter como viva chama no espírito e no coração, na luta pela conquista de seus ideais.
Porém um dia, durante a ditadura, as ações e ensinamentos do americano chamaram a atenção da repressão, que subiu o morro para averiguações.
Encontraram-no preparando uma sopa aos necessitados e, convencidos que tal ato demonstrava que ele subvertia a ordem social e atentava contra a segurança do Estado, derramaram a sopa, destruíram as provisões, espancaram os doentes, as crianças e as pobres viúvas.
Indignado com aquela covardia, o valente soldado resistiu e enfrentou aquela tirania como verdadeiro guerreiro. Mas, apesar de ter surrado vários, de ter quebrado a cara e braços de alguns, não resistiu a todos e foi preso, torturado e encaminhado ao presídio da Ilha Grande, como era praxe naquela época.
Neste ponto, avaliando que já havia despertado suficiente interesse e que doravante necessitava do comprometimento dos ouvintes para angariar credibilidade e atingir o encantamento final, o velho deu de ombros, interrompeu a exposição e justificou que a história era longa e que talvez não interessasse a ninguém.
Como esperava, sua observação foi recebida com protestos e incentivos para prosseguir.
Suspirando fundo e revelando no semblante sincero desgosto, o velho prosseguiu dizendo que Brian sonhava em retornar um dia ao morro, aos seus ensinamentos e as suas ações sociais.
Mas ficou preso por vários anos.
Generoso, sofria mais com o abandono a que relegara os carentes de sua comunidade, do que com sua própria situação.
Por muito tempo ficou nisso, até que um fato novo lhe devolveu a sua alegria e renovou a sua esperança.
Aconteceu de estar ele mexendo no bolso da calça quando encontrou uma semente. Com ela entre os dedos foi até a janela e, a luz do sol, examinou-a detalhadamente.
Admirou-se em identificar ali uma semente de margarida, igual a que cultivava ao redor de seu barraco e cuja cor atribuía a qualidade de representar a esperança.
Brian, idealista, desejou dar a ela a oportunidade de florescer.
Mas, como faze-la nascer, desenvolver e florir?
Naquele tempo era proibido ao detento possuir qualquer objeto que nao fosse de uso essencial.
Levar um vaso para a cela estava fora de cogitação e o carcereiro era rigoroso ao examinar os presos quando se recolhiam após o dia de trabalho.
Pensou, então, em usar sua caneca como vaso.
Mas, como levaria terra para a cela?
O que fazer?
Logo encontrou a resposta para este problema quando lavava as mãos.
Verificou que havia terra entre as suas unhas, porque passara o dia na limpeza do pátio do presídio.
Pouca terra, é verdade! Mas Brian era determinado e paciente.
Assim, com o auxílio de um pedacinho de madeira, raspou as unhas dos dedos e obteve um pouco de terra.
Inteligentíssimo, passou a trabalhar descalço, de modo que além das mãos podia dispor de mais terra, extraíndo-a das unhas dos pés.
Todas as noites, escondido do carcereiro, ele raspava as unhas e obtinha a terra desejada, enquanto em um local arejado, seco e seguro, guardava cuidadosamente a semente de margarida, símbolo da esperança na concretização dos seus ideais.
Aqui, portando-se como escolar aplicado em comemoração cívica, o velho esforçou-se para declamar: "Liberdade, o maior bem do homem, como lhes ensinaram os seus pais e a sua nação;/ liberdade que o fizera engajar como soldado na grande guerra;/ liberdade que resolvera ensinar aos homens do morro carioca;/ liberdade que agora lhe negavam."
Assim, unha após unha, dia após dia, depois de alguns anos, solitário em sua tarefa, conseguira pacientemente encher de terra a caneca que usaria como vaso.
Um belo dia, a luz do sol que filtrava pela janela gradeada, pegou da moringa que recebia diariamente e molhou a terra.
Carinhosamente plantou a semente.
Nem é necessário acrescentar, disse o velho, - com a voz modulada e pausada para despertar simpatia, possibilitar ao guia a tradução detalhada e para determinar à narrativa o ritmo e a cadência necessária -; nem preciso dizer da transformação de Brian.
Se o seu estado físico era deplorável pelos anos de privações, a sua alma renovou! Transformou-o em outro homem, cheio de esperança nos seus ideais e de planos para o futuro.
Um dia a planta nasceu.
Um broto verde, frágil, que surgiu buscando a luz e a vida.
Foi como nascer uma criança. No presídio todos comemoravam e se abraçavam, felizes, ocultando do carcereiro a razão daquela alegria.
Diariamente, através de meios sigilosos que somente os presos conheciam, tinham notícias daquela planta.
Este interesse era a esperança que se instalara definitivamente no coração daqueles homens espancados, abandonados, infelizes, deserdados pela sociedade e que ousaram desafiar o sistema para sonhar com a liberdade e com a democracia.
Tempos depois, o inacreditável! Um botão!
Confraternização, novos abraços, sorrisos e festas.
O carcereiro, atento àquele júbilo, já desconfiava de alguma coisa.
Um túnel, uma fuga? Ou, talvez, uma rebelião?
Brian, generoso e didático, aproveitava a ocasião e interesse para renovar a todos os ensinamentos dos seus ideais.
Um domingo o botão começou a abrir.
A notícia correu; todos se recusaram a sair de suas celas.
Queriam acompanhar de perto o desabrochar da singela margarida que era o símbolo da união e da esperança na concretização dos ideais comuns.
E a flor abriu.
Para eles, a mais linda margarida do mundo.
Mas, a agitação geral chamou a atenção do carcereiro, que resolveu comunicar ao comando.
O diretor, homem cruel, que administrava o presídio com mão de ferro, resolveu dar uma vistoria nas celas.
Começou por onde suspeitava encontrar a razão de tudo: a cela de Brian!
Abrindo violentamente a pesada porta, deu com o prisioneiro deslumbrado com a sua flor.
Prevendo o perigo, por todo o presídio os prisioneiros gritavam, batiam canecas e esmurravam as paredes. Um pandemônio como protesto e um delírio para a satisfação do tirano diretor e do seu estúpido carcereiro.
Arrogante, tomou do prisioneiro o improvisado vaso que carregava a planta e sua delicada flor.
Olhou-a com desprezo e lançou-a na parede.
Não satisfeito, pisou-a com o coturno esfregando-a ao chão, até deixar pequenos restos dilacerados.
Ao levantar a bota, ninguém diria que ali, naquela disformidade, existira um dia uma flor e uma esperança.
Silêncio.
Após pequena pausa, com a voz melancólica de alguém que revive um momento de muita dor, o velho prosseguiu.
Brian, homem valente e corajoso, que não apenas ensinava sobre os seus ideais, mas que também lutava por eles, despertou do seu sonho e resistiu.
Desferiu um soco rápido, que pegou o diretor desprevenido, deixando-o prostrado ao chão junto à flor destruída.
O carcereiro, aos gritos, obteve reforço da guarda que, vendo seu chefe desfalecido, vingaram-se aplicando no prisioneiro tão violenta surra que ele entregou a alma ao Criador.
Ao expressar a última frase, o narrador deu a sua voz tonalidade mais emotiva e elevou os braços ao céu, num gesto teatral e dramático.
Com a voz embargada, lançando as mãos unidas à frente, como alguém que segura entre os dedos uma moribunda flor imaginária, disse que Brian, no entanto, ao dar o último suspiro, estendeu a mão para os restos da flor destruída pela tirania e deixou a vida apertando-a entre os dedos, esvaindo-se juntamente com os seus sonhos.
Descendo os braços junto ao corpo e baixando a cabeça, para revelar servilidade, pesar e derrota, falou que com a morte de Brian o presídio entrou em rebelião, controlada após muito trabalho e violência.
Por fim, para conseguir pacificar os prisioneiros, o diretor fez um acordo.
Para voltarem a ordem exigiram que fosse dada ao morto a liberdade pela qual tanto lutara.
E o narrador, seu velho e fiel amigo, foi autorizado a levar o corpo e enterrá-lo no morro, local que Brian mais amava.
Com viva emoção e procurando demonstrar dificuldade em prosseguir, o velho fez outra pausa, tirou um lenço do bolso e cuidadosamente enxugou os olhos.
Neste ponto, o guia aproveitou para discretamente acionar o controle remoto que guardara no bolso e ligar a disqueteira no micro-ônibus, para, no volume exato, solo de piano e bateria, a voz de John Lennon, envolver a todos com melosa trilha sonora: " Imagine there's no heaven, it's easy if you try, no hell beleow ur, above us only sky, imagine all the people..."
Após aguardar tempo suficiente para a música despertar sensibilidade, o velho modulou a voz ao ritmo da canção e disse que o governo da época não esperava que o sepultamento atraísse numerosos moradores do local que, sensibilizados, acompanharam o funeral levando nas mãos uma flor amarela para depositarem no túmulo, como protesto silencioso à ditadura e como derradeira homenagem ao herói anônimo da liberdade e da democracia.
Por esta razão, a censura proibiu qualquer divulgação dos fatos, o que explica ter ficado acobertado por tantos anos.
Mas, o que importa é que, aqui onde agora todos se encontram, junto à sua comunidade, eternamente repousa Brian.
O velho encerrou, por fim, a narrativa.
Caiu de joelhos junto ao túmulo e declamou o salmo dos Hebreus 10, 32-35: "Lembrem-se do que aconteceu no passado: naqueles dias,... os prisioneiros... e vocês sofreram muitas coisas, mas não foram vencidos na luta... Portanto, não percam a coragem, porque ela traz grande recompensa."
"... porque ela traz grande recompensa" - enfatizou com voz alta e determinada.
Como encenação bem ensaiada, ao mesmo tempo, pela porta aberta do micro-ônibus, Lennon lançava os últimos acordes: "...imagine all the people sharing all the world... you may say i'm a dreamer... and the world line as one."
Ao final da canção reinou grande silêncio, ferido apenas pelo farfalhar de folhas da grande mangueira ao sabor do vento.
Os turistas não diziam palavra.
Estavam como que hipnotizados.
Estimulados pelo semblante de infinita tristeza estampada no rosto do narrador, tinham os olhos úmidos e alguns não se envergonhavam de deixar rolar lágrimas que limpavam na manga da camisa, fungando.
As mulheres, mais sensíveis, buscavam apoio no peito dos seus maridos ou dos seus namorados.
Outros, mais fortes, deslumbrados e para ilustrarem o que contariam em casa aos amigos e aos parentes, tiravam fotografias, buscando imagens do velho, do pé de margarida e do túmulo de terra.
Todo este clima não escapara ao narrador e ao guia tradutor que, o quanto puderam mantiveram o devido suspense.
Depois de cuidadosa pausa o velho levantou-se e disse que isso fora há muito tempo.
Hoje poucos se lembram do ocorrido e dos elevados ideais de Brian.
De modo que suspirou e completou que só lhe restava cuidar do túmulo e das margaridas amarelas que simbolizavam os ideais do morto.
____ Mas, meu sonho é construir aqui um monumento e gravar no bronze e no granito o nome desse herói e de seus perseverantes ideais de esperança, democracia e liberdade, para exemplo e lembrança das futuras gerações!
E, emprestando desanimo na voz:
____ Acho, porém, que isso nunca vai acontecer. Estou muito velho e estas coisas custam dinheiro.
____ Queremos ajudar - disseram todos. Podemos contribuir com alguma coisa?
____ Ora - prontamente respondeu - asseguro que é completamente desnecessário. Essa missão cabe a mim que fui seu amigo e a nossa comunidade que lhe deve muito... mas, no entanto... já que insistem...
Assim, depois de observar o último turista embarcar disciplinadamente no micro-ônibus e descer o morro, o velho recolheu a cruz e a foto antiga, furtadas no cemitério do Caju, e a placa de madeira onde escrevera o nome e a dedicatória.
Levou tudo ao seu barraco, ali perto.
Sentado em sua sala, tomando goles de uma boa cachaça de rolha, separou o dinheiro coletado e o dividiu em duas metades.
Uma para ele, que fora convincente na representação do seu papel, e outra para o guia, que armara o esquema e dissera, com toda razão, que as pessoas adoram ouvir história de herói salvador da pátria e seus velhos amigos fieis, e são facilmente enganadas com o uso indevido e desonesto de sagradas palavras como esperança, democracia e liberdade.
....................
(O golpe é antigo; as borboletas são novas.)
..............
23-25/09/2006 - Ufa! cansei! ...