Fiat 147

Moro numa pacata cidade no sertão baiano e, por vezes, passo temporadas em casa de parentes que residem na capital baiana, a cidade de Salvador.

Como em toda capital, as diversas regiões abrigam moradores das mais diversas classes econômicas e, os meus parentes podem ser classificados como sendo da classe 'C', intermediários dos médios.

Muitos, com este perfil, 'ralaram' para conquistarem um conforto médio com suas casas e apartamentos funcionais, eletrodomésticos modernos, mobiliários e um pouco de tranquilidade financeira.

Meus parentes moram em uma casa simples, de médios cômodos, garagem e quintal, em um bairro popular, cercado por quase todas as facilidades necessárias para uma vida tranquila.

Supermercados, escolas, postos de saúde, delegacia, linha de ônibus e

alguns lazeres fazem parte desta comunidade, além de uma boa e descomplicada vizinhança, onde muitos se conhecem e mantem forte amizade.

É o caso de um vizinho nosso que, por haver a sorte lhe sorrido, adquiriu um veículo popular semi-novo mas, em perfeitas condições de uso e, muito melhor do que o seu já muito rodado Fiat 147, ano 1977, na cor azul-pastel, que a fábrica batizou de 'azul tirreno' e, por isso, ganhou o apelido sugestivo de 'delavé desbotado'.

O problema consistia em vender o tal Fiat, para dar lugar ao novo ocupante da exígua garagem de sua casa, fato que demandou algum tempo e sem o resultado satisfatório.

Foram alguns meses de idas e vindas para a cidade e outros bairros, na tentativa de vendê-lo e sem sucesso. Concessionárias e outros revendedores até tentaram finalizar o negócio mas, o que lhe era oferecido implicaria em uma permuta por outro veículo com retorno financeiro insuficiente e não satisfatório, ou seja, ofereciam muito pouco e a permuta pior ainda. Conclusão, a emenda sairia pior do que o soneto, como se diz no adágio popular.

Placas de venda, anúncios em jornais, anúncios nas rádios comunitárias e até mensagens de utilidade pública o nosso desolado vizinho utilizou para vender. Até comissões prometeu a quem se dispusesse vendê-lo.

- Olhe. Eu quero 'X' no carro. Mas, se voce conseguir 'Y', a diferença é sua e, eu ainda te gratifico com uma 'cervejinha' - era a ladainha à

quem o nosso 'heróico' proprietário, em desespero, abordava.

- Só uma cervejinha??? Pelo preço que o senhor está pedindo, e se conseguir vender, não vai ter comissão certa e ao invés de 'cervejinha', terá de ser um 'engradado' - retrucavam sempre os possíveis vendedores.

Suas tentativas se esgotaram até o momento em que, numa conversa informal, nosso vizinho descobrindo os meus atributos mecânicos, veio até a mim e, num ato cômico de súplica pediu-me uma solução urgente para o seu problema.

Depois de narrar toda a sua peripécia na tentativa de se desfazer do

infeliz veículo, arrisquei um palpite, que depois julguei ser muito infeliz:

- Olha. Já que voce esgotou todas as possibilidades na tentativa infrutífera de vender essa 'carniça', faça o seguinte: tire o seu novo carro da garagem e coloque em outro lugar. Pode até ser lá em casa pois, tem uma vaga. Apertada mas, dá para os dois. O nosso e o seu.

Depois, instale o seu Fiat na sua garagem. Deixe as chaves no contato e o portão destrancado e até meio encostado.

-Não estou entendendo - disse-me o atônito vizinho.

- É simples. Já que voce não consegue vender essa 'encrenca', talvez um ladrão possa te fazer um favor de te aliviar deste problema.

- Mas...

- É pegar, ou largar.

- Sei não...

- Pense bem. Concessionária e revendedores não tem interesse pela 'peça'. O ferro-velho vai te pagar por quilo de ferro. E, o valor que voce vai receber só vai servir para comprar quatro pneus 'meia-bôca'

para seu novo carro. Não vai sobrar nem para a 'fôrça' no borracheiro.

-...

- Sem falar que voce já virou peça de gozação no bairro todo. Sabe do que é que te chamam por aí?

- Não... de que me chamam?

- 'Missão Impossível...'

- 'Cê' tá de brincadeira comigo...

-'Tô' não. Até já te apelidaram de 'Brad Pitt', ou é o 'Tom Cruise' o astro principal, não sei.

- É o 'Tom Cruise'...

- 'Tá' vendo aí... ate voce conhece a saga do filme. Só que lá, tem um final coerente. Já, o seu caso...

- 'Tá' certo. Vamos fazer uma tentativa. Afinal de contas, essa 'lata velha' já está bastante 'sambada' e, uma reforma não viria a compensar.

Dito isto e, convencido de que era melhor se desfazer do 'trambolho', com o pensamento 'vão-se os anéis, os dedos ficam...', nosso pobre vizinho aceitou, para meu espanto, a minha 'infeliz' sugestão, já que eu havia, tão somente opinado, numa tentativa de dissuasão ao seu triste dilema.

Opinião aceita e, para surpresa de todos, coloca o esmurecido vizinho o seu novo carro em nossa garagem e instala a 'velha carcaça' no seu antigo nicho, agora com as orientações para facilitar a ação do possível ladrão.

À noite, recolhemo-nos cada um para os seus lares e, quando veio a madrugada, um expectativa tomou conta de nossas emoções quando ouvimos movimentos na garagem do vizinho. Um barulho de motor sendo acionado e um breve silêncio. Depois, novamente o barulho de]um motor em funcionamento, passos e o rangido de um portão sendo movimentado.

- Será que esse maluco não foi dormir e desistiu de executar o plano de ação? - perguntei-me.

Daí a pouco, novo movimento na garagem do vizinho que, com gritos e

brados não decifráveis e,no meio da madrugada, despertou aos que já estavam dormindo.

Saímos à rua e encontramos com o vizinho que, acometido de cômica surpresa, nos apontava para dentro de sua garagem ainda escura e, quase que sem voz, pela emoção do espanto, tentava balbuciar palavras ininteligíveis quando, alguém de sua casa acende as luzes da garagem.

O que vimos era inacreditável. Incrédulo, mesmo. Algo impossível de acontecer em qualquer geração humana, desde os primórdios da roda até os nossos dias de avançada tecnologia.

Lá, na garagem, devidamente estacionados estavam, o Fiat 147 - 'delavé desbotado' de nosso vizinho e, mais um Fiat 147 de cor duvidosa que eu considerei como 'verde tropical temporal' pois, mais parecia uma mistura de musgos vegetais.

Aproximamo-nos, cautelosamente do 'novo' intruso que estava estacionado de maneira supreendentemente lado a lado de seu 'gêmeo' similar e, em seu para-brisa, devidamente afixado com fita 'durex', um singelo recado:

'JÁ QUE VOCE GOSTA TANTO DESTAS MERDAS, FIQUE COM ESTE TAMBÉM' - assinado: Um feliz ex-proprietário.

Nosso vizinho teve um 'xilique' nervoso e todos nós caimos na gargalhada, madrugada adentro.