Coisas de médico...

A profissão de médico é, antes de tudo, um sacerdócio em que o postulante para tal importante cargo, além do juramento hipocratiano, envergada sobre seus ombros, com a responsabilidade de salvar, ou pelo menos, manter a vida de seu semelhante, terá de ser mais paciente do que o próprio 'paciente', aos seus cuidados.

São anos a fio em uma faculdade, acompanhadas pelo mestrado de doutorando, estágio mais que necessário para as práticas futuras, até a sua colação de gráu e, finalmente, o doutorado.

De posse de sua cátedra, segue o agora profissional de saúde, para as

alas hospitalares com a finalidade de detectar as mais diversas doenças, muitas delas de sua especialidade acadêmica e outras, desafio para os seus novos conhecimentos e, assim, a experiência é adquirida.

Não foi diferente com o doutor Clemêncio Navarro, nome fictício de nosso personagem, formado em clínica médica com especialidade em gastroenterologia, área que estuda as deficiências do aparelho digestivo e seus periféricos.

Médico de larga experiência e consultando há muitos anos em um complexo hospital de uma grande cidade, o nosso doutor tinha sob total controle e responsabilidade os pacientes de sua área clínica e, como de praxe, ao final de cada expediente, sempre fazia uma detalhada supervisão para a passagem do plantão.

Numa certa sexta-feira, de muito movimento ambulatorial e já no fim de seu expediente, consultando os diversos prontuários de seus pacientes internados, o doutor Clemêncio determina as medicações e atenções necessárias para seus auxiliares que deverão ministrar durante o final de semana e reportá-lo na semana seguinte, caso não haja necessidade urgente que implique em sua presença pessoal e imediata.

Orientações passadas, pacientes observados, segue o feliz doutor Clemêncio para um final de semana inabalável e na expectativa de um merecido descanso junto à sua família e amigos.

Sua vida pessoal era próspera e bem estabelecida, cercada de todos os confortos materiais necessários. Bom apartamento, carro importado, família bem estruturada e um grande reconhecimento profissional que lhe conferia respeito e projeção social.

Contudo, este final de semana foi um pouco diferente dos demais, visto que o doutor Clemêncio, por sua importância social, havia sido convidado para diversas atividades sociais que culminaram em uma estafa, o que lhe prostrou fisicamente pois, solícito que era, compareceu à todos os eventos que reclamavam a sua presença, retornando para sua casa já na madrugada da segunda-feira.

Havia abusado, um pouco, do uísque e dos canapés das muitas recepções a que se apresentou e, ao chegar em casa, depois de um rápido banho, deitou-se e adormeceu nos braços de 'Morfeu'.

Sua amada esposa, preocupada com o seu visível cansaço, permitiu-lhe dormir até um pouco mais tarde e, na manhã desta mesma segunda-feira, desperta o doutor Clemêncio, ainda um pouco

ressaqueado pelas poucas doses da forte bebida, já que não tinha o costume etílico e, surpreendido por estar atrasado, veste-se rapidamente e se dirige para o hospital.

Ao sair de seu apartamento e, com destino à garagem, entra em seu carro e, ao sair, colide acidentalmente com o carro de um seu vizinho, tido como encrenqueiro no condomínio, no exato instante em que o mesmo se aproximava.

Acertada a responsabilidade do prejuízo, o doutor Clemêncio segue para a rua e, no meio de um forte temporal, vê-se no meio de um congestionamento monstro e, para completar, os últimos litros de gasolina de seu tanque se esgotam e ele fica impassível pois, o próximo posto de combustíveis está distante cerca de um quilômetro de sua posição.

Segue o perplexo doutor Clemêncio em direção ao posto para adquirir gasolina suficiente para chegar até a bomba e completar o tanque mas, quando retorna com uma garrafa 'pet' de dois litros cheio de combustível, observa ao longe que a polícia está ao lado de seu carro e o guarda já o espera com a multa destacada por atrapalhar o fluxo do trânsito, já que a via não tinha acostamento.

De posse da multa nas mãos, tanque cheio, nada mais poderia atrapalhar a sua viagem, não fosse o estouro de um pneu, por causa de um simples prego em uma tábua, escondido em uma póça d'água no meio da pista e, o pior ainda estava por vir.

Conseguiu o doutor Clemêncio conduzir o seu veículo até um local seguro da via, para não ser surpreendido mais uma vez pela autoridade policial em atrapalhar o fluxo do tráfego e, de mangas arregaçadas se dirige ao porta malas para retirar o pneu sobressalente e o macaco quando, seu celular toca:

- Amor. Olha, esqueci de te falar para voce conferir o 'estepe'. É que o Junior saiu com o seu carro quando estávamos na recepção e furou um pneu. Ele trocou mas, como não tinha borracharia aberta, ele deixou o furado no lugar do estepe e pediu para te avisar. Só que eu me esqueci e só me lembrei agora. Tudo bem?

O que mais poderia acontecer ao pobre doutor Clemêncio?

Passadas longas horas e resolvido o problema do pneu - mão me perguntem como -, chega, finalmente, o doutor Clemêncio ao hospital, seu sagrado local de trabalho e para mais um dia - ou o que restasse dele - mas, ao entrar no saguão principal, não observou ou degrau da escada e, tropeçando projeta-se ao chão, permanecendo numa cômica posição que provoca risadas em todos ali presentes.

Ao se recompor do tombo e ainda no chão, olha o doutor Clemêncio para o alto e se depara com uma enfermeira, com uma pequena bandeja nas mãos.

No contra-ponto desta situação e, momentos mais adiante, a mesma enfermeira está agora diante do diretor geral do hospital, solicitando a sua demissão por motivos de maus tratos e desrespeito para com ela e por parte do doutor Clemêncio.

- De jeito nenhum, senhor diretor. Quero a minha demissão.

- Mas, por que, minha filha.

- O doutor Clemêncio me desrespeitou e no meio de todo mundo.

- Mas, o que foi que ele lhe fez?

- Olha doutor. Eu tenho até vergonha de repetir o que ele me disse.

- Se acalme que eu vou conversar com ele e esclarecer tudo. Eu não acredito que um médico da categoria do doutor Clemêncio possa ter uma atitude tão nefasta assim.

- Pois então, converse com ele. Eu estou muito abalada.

O diretor, na tentativa de encontrar uma solução para a situação criada ali, pede ao doutor Clemêncio que se explique.

- Foi assim - disse o doutor Clemêncio, relatando toda a sorte de infortúnio que se abateu sobre ele naquela negra segunda-feira, desde o incidente na garagem até o tropeço que sofreu na entrada do hospital.

- Daí - prosseguiu - quando eu ainda estava no chão da recepção, ouvindo as gargalhadas de todos e, ao levantar a cabeça, deparo-me com os olhos desta 'filha da puta' de enfermeira que, com uma bandeja nas mãos e com dois supositórios embalados, me pergunta: -'Doutor Clemêncio! O paciente do leito 17 morreu. O que é que eu faço com estes supositórios?

- Aí, não teve jeito, e eu falei: 'descasca os dois e sóca no seu cú, sinhá pôrra!!!!!!