No Restaurante
Poucas coisas causam mais alvoroço e expectativa numa cidade do que a inauguração de um restaurante requintado. A esperança de encontrar um prato saboroso e um ambiente agradável se mescla com a louca vontade de fugir da gritaria dos vizinhos e da gororoba insossa servida em casa. Logo as famílias mais abastadas e loucas pela coluna social fazem suas reservas.
E um novo restaurante estava sendo anunciado aos quatro cantos daquela cidade. Uma coisa nunca antes vista: a promessa de oferecer o melhor da culinária de todos os países, regiões e culturas. Difícil seria alguém não encontrar seu prato favorito no cardápio. Com muito esforço, após uma apertada economia financeira, Ataíde conseguiu reservar uma mesa para si e sua esposa Gherda, em comemoração aos vinte e cinco anos de vida conjugal. Ambos esperavam ansiosos pelo último sábado do mês, dia em que o monstruoso estabelecimento abriria as portas.
Finalmente chegou a grande noite. Ataíde e Gherda apareceram enfiados em trajes sociais alugados especialmente para a ocasião. Um pequeno alvoroço se formava na porta de entrada do restaurante, mesclando repórteres, fotógrafos e fregueses esperando a liberação para adentrar o recinto. No telhado da construção piscava um letreiro de neon: “RESTAURANTE COSMOPOLITA”.
No limiar da porta, um rapaz visivelmente confuso folheou a lista de reservas e perguntou:
— Qual o nome, senhor?
— Ataíde e esposa.
Meio minuto de procura depois:
— Ah, já localizei. Senhor Ataíde e senhora Gorda?
— Gherda! – corrigiu a mulher, com um traço de azedume na voz.
— Perdão. Por favor, mesa número onze, pela esquerda.
Um garçom acompanhou o casal até a mesa indicada. Devidamente acomodados, passaram o olhar pelo ambiente: uma arquitetura ultramoderna, paredes enfeitadas com figuras egípcias, lustres seguindo um modelo oitocentista e alguns tapetes persas espalhados pelo chão de mosaico bizantino. Num canto, uma dupla musical usando sombreros cantarolava um sucesso mexicano. Afinal, um restaurante que se propunha a oferecer o melhor de cada cultura não deveria trazê-las em seu próprio ambiente?
Assustados com a mistura cultural da decoração, marido e mulher se limitaram a observar a mesa, cuidadosamente arrumada. Um candelabro suspendia uma bonita vela acesa, e além dos talheres e louças comuns havia um lavabo para as mãos – coisa de restaurante chique.
Logo surgiu o maître:
— O cardápio, senhor. – disse ao por sobre a mesa um livro do mesmo tamanho e espessura de uma lista telefônica da cidade de São Paulo. Ataíde folheou o menu, no qual havia o nome e a descrição dos pratos escritos em português, inglês, francês, mandarim e esperanto. Gherda esticou o pescoço para ver o interior do calhamaço.
Alguns minutos de avaliação se passaram antes de Gherda fazer um sinal, chamando um garçom e pedir:
— Por favor, moço, prepare para mim este cordeiro assado à moda judaica. Número 1.743 do cardápio.
— Sim senhora – exclamou o garçom sorridente ao anotar o pedido e correr rumo à cozinha.
Com os ouvidos apurados, Ataíde ouviu uma conversa que se passava na mesa vizinha, entre um garçom e um freguês:
— Garçom! Essa galinha que você me trouxe está muito mal passada.
— Como você pode afirmar isso, senhor? Você nem chegou a experimentá-la – defendeu-se o garçom.
— E preciso? Olha só, ela acabou de botar um ovo na salada de alface!
“Que horror!”, ia pensando Ataíde, quando o garçom que anotara o pedido da esposa se aproximou com um sorriso amarelo:
— Perdão, senhora. Não vai ser possível preparar o assado à moda judaica porque nosso cozinheiro judeu não veio hoje. É sábado e vocês sabem que...
— Ah, não tem importância – disse Gherda, pensando: “Ah, tem toda importância sim”. Abriu novamente o cardápio, folheou-o e pediu – Vou querer este quibe árabe recheado, número 2.521.
Numa reverência respeitosa o garçom saiu. Os dois músicos deixaram de lado os sombreros, puseram chapéus de rodeio e camisas xadrezes e começaram a cantarolar Chitãozinho e Xororó. Na mesa ao lado de Ataíde, a discussão se esquentou até o garçom resolver dar uma garfada na galinha e essa sair voando e cacarejando pelo restaurante. Ao longe, alguns bacanas posavam sorridentes para os fotógrafos do jornal municipal.
Logo voltou o garçom, com o rosto vermelho de vergonha:
— Com licença, senhora. O quibe árabe recheado provavelmente vai demorar um pouco porque nosso cozinheiro árabe está rezando em direção a Meca. Mas assim que ele terminar suas preces, eu peço para que ele prepare seu prato o quanto antes.
— Sem problemas. Eu espero. – Gherda olhava para o marido e seus olhos faiscavam: “Olha só o inferno para onde você me trouxe, Ataíde!”
— Enquanto esperam, aceitariam uma sopa por conta da casa? – sugeriu o garçom.
— Oh, claro! – Ataíde exclamou desesperado, tentando consertar o estrago da noite. Depois de vinte e cinco anos de casado, sabia muito bem interpretar o olhar da esposa.
Diante da afirmativa do freguês, o garçom retirou do paletó um envelope de sopa instantânea de cebola, derramou seu conteúdo no lavabo e o pôs sobre a chama da vela, mexendo vigorosamente com a colher de sobremesa. Grossas gotas da mistura choveram sobre o vestido de Gherda, que se inflamou com a ideia de levar o vestido alugado para uma tinturaria. O garçom pousou o lavabo com a sopa sobre a mesa e saiu em outra reverência. Ataíde e Gherda olharam para o centro da mesa, querendo não acreditar na cena grotesca que havia acontecido. Pelo restaurante, outro garçom irado perseguia uma galinha fugitiva.
A dupla de músicos parou de imitar Chitãozinho e Xororó. Um deles colocou uma peruca loira, botas coloridas, camisa cheia de desenhos. Iniciou-se uma sessão de sucessos da Xuxa.
Quando o garçom voltou com o quibe recheado, a vela sobre a mesa do casal já estava quase pela metade e a vasilha de sopa jazia intacta, formando uma espessa crosta na superfície. Gherda e Ataíde recobraram um pouco os ânimos e se puseram a devorar o prato. Pouco depois veio o maître:
— Estão satisfeitos com nossa comida, senhores?
— O quibe está muito bom – afirmou Gherda, - mas não vi recheio nele. Afinal, não era quibe recheado?
— Sim, senhora – respondeu o maître com solenidade. – O quibe tem recheio de carne moída.
Antes que Gherda abrisse a boca para dizer que qualquer quibe é feito todo de carne moída, um garçom bem jovem se achegou à mesa perguntando:
— Vocês vão querer algo para beber?
— Sim! Traga uma garrafa de vinho tinto suave, por favor – Ataíde foi rápido para não dar brechas à mulher.
Garçom e maître se retiraram. Os dois cantores agora interpretavam uma tarantela com muita vivacidade. Numa ponta do restaurante uma mulher berrou ao ter a perna agarrada por um garçom de cócoras; noutra ponta, uma galinha passeava tranqüila entre os fotógrafos, e alguns deles até fotografaram-na.
O garçom jovem voltou com uma garrafa de vinho nas mãos. Sacou a rolha e pingou um pouco do líquido na própria mão, sorvendo-o com gosto. Pôs a garrafa na mesa e disse:
— O vinho está uma delícia. Sirvam-se à vontade.
Desconcertada, Gherda pediu licença ao marido e foi ao banheiro retocar a maquiagem e se recompor psicologicamente. Nesse ínterim, Ataíde chamou o maître e explicou-lhe o motivo dos dois estarem lá naquela noite. O maître, com um largo sorriso, disse que faria uma bela surpresa para os dois pombinhos.
Gherda voltou para a mesa, desejando no fundo de sua alma ir para casa e nunca mais sair com o marido. Mas antes que ela expressasse seus desejos, as luzes do recinto foram apagadas e tudo ficou em silêncio. Só a luz das velas sobre as mesas iluminavam os rostos das pessoas.
Foi então que os dois músicos se aproximaram da mesa do casal aniversariante: um tocando violino maravilhosamente bem, e o outro cantando com um toque lírico em sua voz e uma bela rosa vermelha em sua mão. Aquilo emocionou muito Gherda, que nem se deu conta de que a música em questão era “Fui no Itororó”.
Terminada a cantoria, o músico depositou a rosa na frente de Gherda, beijando delicadamente sua mão. O restaurante todo, em pé, aplaudiu e começou a cantar “parabéns a você” enquanto o maître trazia da cozinha um bonito bolo em forma de coração, todo confeitado com chocolate e glacê. Gherda e Ataíde sorriram aliviados. A noite estava salva. Tudo aquilo foi um final perfeito...
A não ser por um garçom maluco que, agarrando uma galinha desnorteada, degolou-a sobre o bolo.
Marcel Gustavo Alvarenga