Avtandil e Bidar
(Excerto de meu diário de viagens)
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Como a grande maioria das mulheres de seu país, Zarema era muito bonita: sua pele tinha aquela suave e amendoada cor inerente aos georgianos, e os olhos eram negros, penetrantes e imbuídos de languidez, trazendo em si os encantos do Ocidente e do Oriente combinados. Seus cabelos, também negros, agitavam-se levemente com a fria brisa daquela montanhosa região, e o estatuesco nariz arrebitado recordava-me de Nelly não sem uma pontada de angústia; de fato, seria ela a única mulher em todas as minhas andanças a servir-lhe de substituta digna, mas mal podíamos adivinhar então que nos despediríamos ainda mais tristemente, e que a partir daí carregaria mais um gravíssimo delito em meu coração.
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“Meu país é pequeno, e poucos são os estrangeiros que o conhecem”, ela disse-me, reclinando a cabeça em meu ombro e pressionando-me afetuosamente as mãos. “Fico muito feliz por servir-lhe de guia, ainda mais a um escritor que pode contar aos outros tantas alegres histórias”, continuou.
“Não sou conhecido em meu país por ser uma pessoa alegre”, respondi-lhe, forçando-me a enxergar em seu ser vestígios daquela criança que perdera há muito tempo. “Que dirão minhas histórias!”
“Impossível que não seja alegre!”, exclamou ela com um tom de voz brincalhão, exageradamente escandalizado. “Como pode não ser alegre em teu lindo país, que é tão caloroso e exuberante em fauna e flora? Aqueles encantadores versos sobre a morna terra de palmeiras onde canta o sabiá chegaram até mesmo a nossos distantes ouvidos, e que não daria eu para visitá-la ao menos uma vez antes de morrer…!”
Zarema interrompeu-se. Percebera, talvez, o pesar em meus olhos à medida que falava, e não quis prosseguir com medo de magoar-me. Encarei-a, tentando assegurá-la tacitamente de que tudo estava bem – retribuiu meu gesto segurando-me o queixo e aplicando um terno beijo em meus lábios.
“O que tanto lhe aflige, meu querido…?” Tal como Nelly, ela também chamava-me de querido, e sempre que o fazia uma úlcera em meu coração ardia insuportavelmente. “Por que nada me diz a respeito de seu passado, para que eu o ajude em sua cura? Ainda agora, mesmo depois de tudo, não confia em mim? Diz ser escritor; nada me mostrou do que escreve até então. Leio quase sempre em seu semblante que passou por muitas agruras, mas quando o pressiono para sabê-las desvia bruscamente o assunto. Sou sua amiga, e sua amada: contei-lhe tudo sobre mim na medida do possível. Imploro-lhe, querido! Independente do quão negro seja seu passado, quero saber dele; e se não puder fazer com que dele se esqueça por completo, ao menos o recordarei de que o futuro se estende à nossa frente rumo ao infinito, e o desbravaremos unidos.”
Deu-me outro beijo, e afagando meus cabelos fitou-me suplicantemente. “Por favor…?”, encerrou ela, quase num sussurro.
Suspirei amargurado. Haveria de desnudar os olhos de mais uma inocente às infindas profundezas do báratro de minha alma gangrenada, anatematizando-a com o mero ato de ter-me conhecido e tornando ainda mais malquista minha presença na Terra. Queria poder contar-lhe que mais amava os restos de minha antiga paixão que nela discernia do que como realmente a mim se demonstrava, mas como poderia magoar de tal forma alguém que, desde que pusera meus pés em solo georgiano, prestara-me valorosíssimos auxílios? Ainda nutria um certo otimismo em relação ao futuro então, e muni-me de todas as minhas esperanças para tentar fazer-me crer que, talvez, Zarema poderia dar-me a redenção; talvez, aprenderia a amá-la pelo que era e, esquecendo-me de todas as desventuras das quais fui sujeito, viveria uma nova vida em uma nova terra, ao lado de uma adorável esposinha que nada deveria àquela malfadada garotinha que muito provavelmente já não mais se lembrava de mim – e, se o fazia, não devia ser em termos favoráveis. Ignorei os olhares venenosos e irônicos de Scarbô e, acariciando as coradas faces de Zarema, anuí:
“Se tanto quer saber sobre as negras páginas de minha vida, irei desvendá-las a você. Não agora, no entanto – viemos até aqui para nos divertirmos. Quando retornarmos à sua casa, à noite, contarei tudo aquilo que quer saber – por que deixei meu país, por que não sou alegre e por que ainda não li-lhe nada de minha produção literária, que é verdadeiramente vasta para alguém de minha idade mas não registra outra coisa fora a queda de minhas Graças. Aviso-lhe de antemão…! Tremerá de frio ante cada folha que lhe for revelada, e fugirá de minha presença arrependida de dedicar-me sua compaixão…!”
“Garanto-lhe que não”, cortou-me ela, colocando o dedo indicador sobre meus lábios. “Jurei uma vez e jurarei de novo: enquanto me for dado viver a seu lado, farei o que estiver a meu alcance para curá-lo, meu querido.”
“Espero ser-lhe um bom paciente”, sorri, e pusemo-nos a admirar as águas do Kura em silêncio. “Pelo menos por ora, que este rio arraste para longe meus pesares…”, pensei.
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Ficamos assim, calados, por uma boa hora, até que Zarema foi a primeira a romper o silêncio.
“Já sei como colocar um sorriso neste seu rostinho! Vou lhe contar uma história.”
“Verídica ou fictícia?”
“Não sei dizê-lo – mas, também, que importa? É uma história engraçada. Meu falecido pai costumava promover banquetes animadíssimos em casa; comida e bom humor nunca faltavam. Ele era sempre o tamada à mesa, e como tal devia entreter os convivas, brindando à sua saúde. Ele gostava muito de contar-nos histórias e lendas, umas sérias, outras cômicas. Esta que vou relatar-lhe nunca falhava em arrancar risos de todos! É um tanto quanto obscena, no entanto – por isso, fico feliz de estarmos aqui a sós.”
“Engraçada e obscena? É uma boa combinação. Ansioso estou para ouvir este conto de Boccaccio que me promete!”, ri-me.
“Não mais se inquiete então, querido!”, respondeu ela. “O ouvirá imediatamente.”
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Pois bem! Como dizia eu, meu país é pequeno – porém, o que falta-nos em extensão, o compensamos nas conquistas de nosso áureo passado. Já houve um tempo em que fomos a joia da coroa do Cáucaso, governados por nossa própria Gloriana que foi Tamar, única mulher que inquestionavelmente fez por merecer ganhar o epíteto de mepeta mepe, honrado em maior ou menor grau por todos os nossos monarcas, orgulhosos descendentes de Davi de Israel, e a mais fina flor de nossa cavalaria podia competir com qualquer ocupante da Távola Redonda em feitos heroicos e bravura. Como é triste constatar, a cada ano, livros e mais livros sendo expelidos, todos discorrendo exaustivamente e sem qualquer inovação sobre os mesmos velhos temas de Lancelot, Merlin, Artur, garatujados por escrevinhadores falastrões e desprovidos de inspiração! Fique sabendo, meu amigo, que nenhum destes cavaleiros poderia bater-se contra nosso Avtandil e sair inteiro.
Avtandil viveu em Kutaisi durante os tempos de Davi IV, alcunhado “o Construtor”, e nunca houve homem tão abençoado pela Fortuna como ele então: bravo, destemido, indulgente para com os amigos e impiedoso para com os inimigos, nem mesmo o rei estava alheio a seus feitos, e fora por ele condecorado amirspasalari (ou seja, comandante) de suas tropas. Não só isso: era ele casado com uma lindíssima circassiana de nome Bidar, que conhecera em uma de suas aventuras. Foi durante uma pitoresca jornada a Sochi que ele a resgatara das garras de um monstruoso dragão (afinal, naquele tempo, a Terra ainda era jovem e tinha magia em si para engendrar seres fantásticos, por isso as velhas lendas são repletas deles), mas por ora esta história não vem ao caso. O que importa saber é que ambos se amavam muito, e um vivia única e exclusivamente para a felicidade do outro.
A Geórgia vinha sendo vítima das constantes incursões dos seljúcidas, que ambicionavam substituir a sagrada Jvari Vazisa e os ancestrais brasões dos Bagrationi por sua branca bandeira estampada com a lua crescente, e naturalmente Avtandil fora chamado para defender sua pátria. Despediu-se amorosamente de Bidar, prometendo-lhe que voltaria o mais brevemente possível, e após encomendar-se à proteção de Deus e Santa Nino partiu com o exército real numa expedição de meses para combater os inimigos de onde quer que atacassem. Porém, apenas naquela fatídica data de 12 de agosto de 1121 é que conseguiríamos de fato expulsá-los.
No Vale de Didgori, georgianos e seljúcidas se enfrentaram em encarniçada peleja, e apesar de nossas tropas estarem em menor número, eram compostas por homens briosos e de reputação ilibada, que ainda tinham a vantagem de serem liderados por Avtandil. Soldados de ambos os lados sucumbiram, e ao fim da batalha o Didgori estava tinto de escarlate, mas nossa vitória foi decisiva e nosso triunfo ficaria gravado nos anais da História por séculos – todo 12 de agosto celebramos o Didgoroba em recordação a estes defensores de nossa terra, e, inclusive, meu querido, há um intrigante monumento erigido no Vale em tempos modernos ao qual espero muito levá-lo para o conhecer um dia desses.
Enfim, os mortos foram sepultados, os vencedores celebraram e Avtandil recebera todas as honras que merecia, mas aquilo que mais queria era regressar ao lar e rever sua esposa. A cada passo que seu cavalo dava rumo a Kutaisi parecia-lhe que o coração ia explodir dentro do peito; mal podia esperar para envolver Bidar num abraço e trocar o campo de batalha pelo leito nupcial…! Entretendo estes doces pensamentos, eventualmente chegou à sua casa, exultante de alegria e transido de saudades.
Transpôs a porta e chamou por Bidar; ninguém o respondera. Preocupado, Avtandil a procurou por todos os cômodos da casa, sem que a encontrasse. Sua felicidade inicial tornou-se pavor – o que teria acontecido? Apenas o quarto onde dormiam restara e para lá o cavaleiro seguiu. Abriu a porta devagar… e aquilo que viu fez com que soltasse um brado lancinante!
Meu pai costumava valer-se de termos deveras escandalosos para narrar esta parte, levando todo mundo às gargalhadas, mas como sou mulher e você, escritor, acho de bom-tom empregar aquele velho eufemismo do Bardo inglês: Bidar e um outro homem, de rosto obscurecido, montavam a besta com dois dorsos na cama. A mulher encarou o marido, furiosa, e antes que Avtandil pudesse dizer qualquer coisa ela atirou-lhe um travesseiro.
“Impostor!”, gritou ela. “Quem é você que vem incomodar-nos nesta hora? É alguma piada de mau gosto? Não vê que estou com meu marido?”
“Como isto pode ser!?”, indagou Avtandil, estupefato. “Sou eu teu marido! Acabo de voltar da guerra…”
“Mentira!”, interrompeu-o Bidar. “Meu marido está aqui, então é melhor parar com esta farsa antes que venha a machucar-se muito! É ele um valoroso guerreiro.”
Tiritando de pavor, o amante de Bidar se escondera sob os lençóis. O cavaleiro queria vê-lo – quem havia conseguido roubar sua identidade tão bem enquanto esteve ausente? Mais chocado do que furioso com toda aquela situação, Avtandil puxou os lençóis, atirando-os a um canto, e mais uma vez teve dificuldades tentando reprimir um grito de surpresa.
Era como se estivesse se encarando num espelho: aquele homem poderia ser seu irmão gêmeo. O cabelo, os olhos, o nariz… eram-lhe idênticos! A única diferença era ser mais magro e malcuidado em sua aparência. Ele chorava por sua vida, gaguejando:
“S-s-senhor Avtan-d-d-dil! Não me m-machuque, por favor! Permita-me explic-c-c-car tudo, mas poupe minha vida!”
“Primeiramente, pelo bem de minha esposa, temos que desfazer este mal-entendido”, foi a resposta do guerreiro. “Minha amada”, dirigiu-se ele à mulher.
“Não sou sua amada, farsante”, foi a resposta de Bidar.
“Deve lembrar-se de que tenho uma marca de nascença na nádega esquerda, não? Ela é semelhante ao Borjgali, por isso todos dizem que fui consagrado desde minha concepção a lutar pela cristandade e pela Geórgia.”
“Claro que lembro-me!”
“Por acaso, discerniu-a neste estranho que ocupa meu lugar?”
“Decer…” Bidar deixou a palavra morrer-lhe nos lábios. Havia se esquecido deste detalhe! Avtandil despiu-se da couraça, ostentando o sagrado sinal com o qual Deus lhe marcara, e aquele estranho doppelgänger, obviamente, tinha o traseiro tão limpo e liso quanto o de um bebê. Desta vez foi a mulher que implorou pela misericórdia do cavaleiro, ajoelhando-se ante ele.
“Queiram explicar-me como deu-se toda esta confusão, e apenas então falaremos de misericórdia”, disse Avtandil. “Quem é você, estranho que tanto se parece comigo, e o que o trouxe a meu lar?”
“Me chamo Gela”, respondeu ele, um pouco mais calmo. “Sou um pobre andarilho que faz das ruas seu lar e do céu seu teto. Minha parca fortuna depende da caridade alheia, e acabo de chegar a Kutaisi a fim de avaliar o grau da hospitalidade de seu povo; bati em quase todas as portas da cidade, mas ninguém deu-me um único tetri! Eventualmente vim dar aqui, e julguei que não faria mal tentar só mais uma vez antes de seguir para morrer em algum canto, pois há dias nada tinha para comer.
“Bati à porta; sua esposa abriu-a. Encarou-me num misto de alegria e surpresa, e mal deixou-me terminar de falar pulou rumo a meus braços, gritando: ‘Avtandil! Meu Avtandil! Finalmente retornou a mim depois de tanto tempo!’ Naturalmente, até mesmo um pobre-diabo como eu estou ciente de seu nome e feitos, e mal podia crer que aquela era a morada do valente Avtandil e sua graciosa esposa Bidar – sei pôr-me em meu lugar, no entanto, e estava prestes a desfazer este engano quando disse-me ela: ‘Deve estar exausto após passar tantos meses distante, guerreando… Vamos, meu amado! Entre, e vou preparar-lhe uma bandeja de meus khinkali.’
“Como poderia negar? Pelo menos até que estivesse bem alimentado resolvi manter esta farsa tão fora do comum. E devo dizer-lhe – nunca tive uma refeição tão lauta como esta! Comi pela minha barriga e pela sua, e achei que ia rebentar ao fim. Senti sono, pois havia andado o dia todo sem descanso – perguntei onde era o quarto, e receei que isto fosse levantar alguma desconfiança; sua mulher, porém, atribuiu-o à minha exaustão e prolongada ausência, e apontou-me o caminho. Despi-me, deitei-me e fiquei pensando em como proceder em seguida – devia continuar sustentando esta fraude enquanto fosse possível? Devia fugir sem maiores explicações? Antes que pudesse chegar a uma conclusão palpável, adormeci.
“Não sei quanto tempo depois, despertei com a sensação de que algo me pressionava. Temi que, tendo sido descoberto, uma trágica vingança recaíra sobre mim e, interiormente, pedia a remissão de meus pecados a Deus, mas assim que meus olhos recobraram o foco vi sua mulher, nua em pelo, cavalgando-me…! ‘Sem tua presença achei que definharia sem mais sentir prazer’, falou, acariciando-me o rosto. ‘Tenho meses de amor acumulados em mim, e esperei até então para dá-los a ti.’ A princípio tentei debater-me, mas convenhamos: quem seria capaz de resistir a uma mulher assim tão encantadora? Por menos que compreendesse de tudo isto, estava disposto a tirar vantagem da credulidade dela a este ponto, mas vendo-o agora em minha frente, pessoalmente, pude finalmente deduzir o porquê de seu engano; qualquer outra pessoa em seu lugar teria feito o mesmo.”
Avtandil olhou para Bidar, e indagou-lhe:
“O que ele diz é verdade?”
“Sim!”, ela exclamou, chorosa. “Mas pode mesmo culpar-me por isto, meu amor? Vivo solitária desde sua partida! Quantas vezes não chorei de saudade, desejando-o aqui a meu lado para aquecer-me…!”
“Tenha piedade de nós”, suplicou Gela. “Nenhum de nós quis fazer mal. Que culpa tenho eu de sermos tão parecidos?”
Avtandil, que era justo e sensato, perdoou aos dois: a Gela por não ter tido intenções maliciosas, e a Bidar por seu engano ser, de fato, desculpável. Como sempre considerava as opiniões da mulher, algo sem precedentes entre os homens daquele tempo, também fez um trato com Gela: enquanto estivesse ele ausente em batalha, o andarilho poderia substitui-lo e satisfazer à esposa a seu bel-prazer, conquanto que ninguém mais ficasse sabendo – afinal, se este costume caísse em conhecimento público, quantos casamentos não se arruinariam…! E foi assim que, desde então, os três permaneceram convivendo em paz e harmonia até o fim de suas vidas.
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Eis que chegamos ao fim da história, e só nos resta sua proveitosa lição de moral, que era proferida por meu caro pai entre uma golada de vinho e uma sonora casquinada: “Se tiveres que ser corno, é preferível receber os chifres das mãos de um amigo do que de um inimigo!”
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