A QUEDA DE NARCISUS

Eu não quero saber de São João. Nada de festas juninas. Não e não... Prefiro ficar trancado em casa me olhando de vez em quando no espelho. Negócio de se vestir de caipira e pular fogueira não é pra mim. Isso é coisa do passado, coisa do interior. Além do mais, pra que fingir de caipira pra dançar quadrilha? Quem trouxe para os trópicos essa idéia? Certamente foram os portugueses. Foram eles sim que trouxeram essas festas populares com todas suas religiosidades e até suas mentiras. Trouxeram também, o Carnaval. Ah, o Carnaval - outra grande mentira. Pamonhas! Nem sei qual é o gosto do licor de jenipapo. Que canjica ou arroz doce que nada! Essas comidas de quermesses e quadrilhas só dão azia na gente. Pra quê ficar se exibindo nessas festas para ser alvo de comentários mais tarde?...

Também, depois do último Carnaval, não quero mais saber destas malditas festas populares nem mesmo quero aparecer em público. O que tinha eu de cair no papo daquela falsa loura?! No topo dos meus 23 anos bem vividos, caí como um bobo. Ou foi tudo coincidência?...

A turma andava duvidando da minha masculinidade e o cochicho andava à boca pequena. Não sei como surgiu o assunto. Só sei que, em cada festinha, eu sentia o comentário por entre as linhas. Para ver se me deixavam em paz, muito antes do início do verão, resolvi entrar pra uma academia de ginástica e malhar pesado. Em pouco mais de dois meses meus bíceps saltaram, meu peito estufou, minhas coxas engrossaram e meus braços ficaram de dar inveja a qualquer Schwarzenegger. Na praia, os garotos olhavam invejosos para o meu físico, as gatinhas suspiravam quando eu passava. Ah, meus bíceps...

Toda vez, antes de sair de casa, eu ficava nu em frente ao espelho e mirava meu corpo, me admirava e notava como eu havia ficado bonito. Ah, meu corpo... meus bíceps... Como eu estava másculo, musculoso... Dava gosto me ver! Olhava minha bunda rija, minha batata da perna dura como um pedaço de pau. Uma verdadeira estátua grega, não esculpida em mármore, mas de carne e osso, pronta para ser admirada dia e noite por todo o mundo. Desafiava, olhando a minha imagem, perguntando ao espelho quem haveria de ter a audácia de duvidar da minha virilidade.

Todavia, os risos e depois o silêncio daquele baile de carnaval, colocaram tudo abaixo. Danificaram a minha obra-de-arte, como uns loucos inconseqüentes destroem um peça de maior valor de um museu. Tudo ainda ecoa nos meus ouvidos e não me deixa esquecer. Ah se eu soubesse... Os risos... e depois o silêncio mortal! Aquelas faces me encarando... Não posso apagar aquele momento da minha memória.

Tudo começou quando conheci Valquíria, uma morena escultural com longos cabelos caídos sobre os ombros. Tinha os cabelos pretos, depois resolveu pintá-los de louro para me atrair. Via-a jogando voley na praia e, pra dizer a verdade, ela era apenas mais uma no meio de tantas gatas exibindo seus físicos em minúsculos biquinis. Toda vez que eu passava desfilando meu físico novo, percebia que ela errava o saque ou perdia a bola de propósito só pra parar o jogo, assim ela dava um tempinho e ficava olhando para mim. Puro truque. Divertia-me com a situação até que um dia fomos apresentados. Daí para o primeiro encontro e estarmos sempre juntos foi um estalo de dedos. Era praia, cinema, barzinho, festas e boates - estávamos sempre juntinhos. Passamos o reveillon juntos e abrimos uma garrafa de champanhe para brindar a nossa amizade e união. Ela não cansava de elogiar meu físico, meus cabelos naturalmente louros e cacheados, meu nariz quase perfeito e meus dentes brancos como marfim. Em público, ela me abraçava, se enroscava em mim e alisava meus bíceps... sempre meus bíceps. Eu me sentia seguro ao lado dela e não se ouvia mais os ti-ti-tis maldosos.

O resto do verão passou tranqüilo: eu malhava o mais que podia na academia e desfilava com Valquíria pra baixo e pra cima. Perdi até o hábito de me olhar no espelho d’água procurando a minha imagem quando o mar estava calmo. A única novidade é que resolvi criar um cachorro: um pit bull para compor a imagem do Homem atual. Eu estava pronto. Pensei que assim, todos os fuxicos seriam enterrados de uma vez por todas. Ninguém podia falar mais nada.

Tudo estava muito bem até que ela veio com aquela idéia de ir ao malfadado baile de carnaval. Ah se eu soubesse que ia ser aquele vexame... E os risos?... E o silêncio sepulcral depois dos risos?... Isto foi o pior. Não consigo esquecer aquele momento e aquelas caras todas olhando para mim.

Foi ela quem sugeriu que fôssemos ao baile. Foi dela a idéia que fôssemos fantasiados de Adão e Eva, peladinhos como viemos ao mundo. Lógico que comprei logo a idéia. Assim podia exibir meu físico e teria a certeza de que todos os comentários estavam findos de vez e para sempre. Esperei o baile ansioso, não via a hora de chegar o dia tão desejado, e o Carnaval ia logo cair no mês de março, final do verão...

Finalmente chegou o dia. Quando entramos no clube, o baile estava animado. Topamos com muitos conhecidos de cara e todos vieram nos cumprimentar. Eu vestido de Adão, Valquíria fatasiada de Eva. Duas folhas de parreira de plástico eram as nossas fantasias. Valquíra tapava os peitinhos miúdos com a vasta cabeleira enxertada de apliques. Estávamos abafando, chamando mesmo toda atenção até que Zé Roberto apareceu. Ele estava vestido de César, o grande Imperador Romano. O salão parou e ele desfilou, estendendo sua mão para o ar, cumprimentando todo o mundo, de um a um, muitos já nossos conhecidos. Quando Zé Roberto/César chegou até a nossa turma a alegria era geral. Já tínhamos tomado todas as cervejas geladas que merecíamos. Mesmo assim, suávamos ao som de "Quanto riso, oh, quanta alegria... mais de mil palhaços no salão..." Não sei se foi combinado, mas ele veio direto para a gente, mostrando toda sua autoridade de Imperador Romano, e, com a mão estendida no ar, foi logo cumprimentando Valquíria com o seu sorriso largo costumeiro:

- Ave Eva!

Valquíria se assanhou, mostrando toda sua graça, se sentiu mais fêmea que nunca; estendeu também a mão para o ar e respondeu prontamente com um sorriso mais largo ainda:

- Ave César!

Foi aí que aconteceu o grande fiasco. Todos deliraram com a cena, parecida tirada de uma superprodução hollywoodiana. Por segundos, eu até acreditei naquela espotaneidade, mas logo vi que tudo pareceu combinado porque Zé Roberto, o Grande César, se dirigiu imediatamente para mim com a voz bem clara. E logo em seguida os risos e o silêncio vazio que destruiram o meu sonho. Tudo não passou de frações de segundos em ouvir o som surdo e debochado da voz de Zé Roberto ainda com a mão no ar. Dentro do delírio, todos ouviram muito bem ele rosnar:

- Ave Adão!!!