Óleo de canola

23h45. Nanda e Raul preparam-se para dormir e cruzam-se no banheiro da suite, debruçando-se cada qual sobre sua pia. Raul cambaleia de sono, depois de dedicar muitas horas à revisão do relatório que precisa entregar à Sociedade de Psicanálise, todos os prazos já vencidos, sem conseguir desligar-se da tarefa inconclusa. Num gesto reflexo, alcança a escova de dentes elétrica, espreme sonambulicamente o tubo de creme dental duas vezes, puro desperdício, e começa a esfregação, sob o olhar de Nanda que acaba de massagear o rosto com a água hidratante de alloe vera, em ritual embelezador que se repete noturnamente nos últimos cinco anos.

– Raul, que tipo de óleo temos comprado?

¬– Hã? – o marido esforça-se para abrir os olhos. Raul costuma escovar os dentes com os olhos fechados, diz que funciona como uma meditação short style, o semblante cansado e esverdeado por olheiras.

– Óleo, óleo! Óleo de cozinha, ô gênio! Acorda prá cuspir!

¬– Co...mo asxx...im? Ó..lhu? – abestalhado, querendo falar, ainda que com a boca cheia de espuma.

– Sim, Raul, o óleo que a gente usa para cozinhar. Qual é o que compramos?

Num notável esforço neuroquimico para um cérebro extenuado, Raul procura decifrar a mensagem inaudita, a mente ainda atormentada por imagens persecutórias do relatório ainda-não-concluído-sabe-deus-para-quando-se-é-que-um-dia-vai-ser, e consegue articular um pensamento solitário: Não pode ser verdade o que estou ouvindo! Nanda quer saber qual é o óleo de cozinha que EU compro? – a ênfase no pronome pessoal deve-se à intromissão de um quase-pensamento de natureza esquizo-paranóide originado pela sonolência de Raul, pois, afinal, era ele que faz as compras do mês. Cacete, para que Nanda quer saber? Continua escovando os dentes, a boca transbordante de espuma. E balbuciou:

– Ca...noo...la... – mistura de pasta com saliva escorrendo pelo pescoço.

– Olha, não pode não! Li que o melhor óleo para cozinhar é o de girassol, tem elementos antioxidantes, anticancerígenos, antienvelhecimento, a favor da longa vida, da elasticidade da pele. Tem que ser de girassol. De onde você tirou a idéia de que óleo de canola é melhor?

Raul franze o sobrolho, procurando resgatar o diabo da informação na memória combalida pelo sono. Quando teriam decidido que óleo de canola era melhor do que o óleo de girassol, que usavam ANTES de passarem para o de canola? Há uns dez anos? Lembra-se apenas de ter sido uma decisão conjunta, pois Nanda sempre foi a mais ciosa em relação a alimentos e hábitos saudáveis e ele jamais ousaria fazer uma mudança tão drástica na dieta sem consultar a mulher. A ponto de, toda vez que alguém observava ao casal a boa disposição de Raul e a ausência de sinais mais visíveis de envelhecimento para os seus quase 60 anos, ele dizer: – Graças a Nanda, a guardiã de minha vida antioxidativa!

– N...um ssxei – a espuma continua a transbordar da boca mole – sssxei qui fon muit...cho tempu aaa...trásx! Ólhu d..i caa...no...laa é bomm...

– Pôrra, Raul, que informação mais torta e simplória é essa? Cara, li hoje na Biblioteca Virtual de Saúde – e começou a desfiar seu talento para a pesquisa, fartamente conhecida por Raul:

– O que diferencia o óleo de girassol dos outros óleos é a concentração de ácidos graxos. Os ácidos graxos que interessam sob o ponto de vista da nutrição, são os insaturados oléico, linolênico e linoléico, principalmente este último capaz de dissolver e eliminar o excesso de colesterol no organismo, deixando-o na taxa normal. A concentração de ácido linoléico no girassol é de 62,2%, enquanto há 21,l% de óleo oléico. Essa característica, garante ao óleo de girassol propriedades altamente reguladoras nas doenças cardíacas.

Raul ouve, ouve, acelerando a escovação, não porque queira terminar rapidamente para dedicar-se integralmente à discussão científica proposta por Nanda àquela hora da noite, após um dia exaustivo de trabalho intelectual, com a pôrra daquele relatório, a merda da psicanálise, o saco daquele paciente escolhido para ser o infeliz da hora. Não. Quer mesmo é se afogar na pasta de dente para não ter que ouvir a xaropada das explicações científicas de Nanda. Morrer ali, submerso em espuma dentifrícia produzida pela sensodyne pro-esmalte de uso diário que protege a erosão ácida e a sensibilidade, protege contra os ácidos de vinhos, frutas, refrigerantes, contém sodium fluoride (1425 ppm de Flúor) e potassium nitrate, melhor se usada de 2 a 4 vezes por dia, é claro, e escolhida por quem?

– Esx...col...hemosx jun...ntus. E...u lii, caa...no...laa ééé reco...men...dadada. E toma pasta dental escorrendo pescoço a baixo, manchando a camiseta do Vigão que Raul usava para dormir só porque era velha e macia, com alguns poucos buracos produzidos pelo tempo e uso. Baba por toda a parte, resultante do esforço de comunicação de Raul.

– Raul, que raios de psicanalista você vai ser quando crescer? Não se fundamenta em dados científicos; acredita em qualquer coisa que houve dizer. Ingenuidade, você sabe, pode levar à morte, ou a uma doença séria incapacitante. Deus, por falta de informação! EU li na BVS – se o leitor já se esqueceu, trata-se da Biblioteca Virtual de Saúde, site preferido de Nanda –, me fundamentei, apresentei minhas fontes científicas. E você, diga lá, quais são as suas?

Raul pensa em engolir a espuma abundante que já atinge o nariz, a testa e boa parte das orelhas. Avalia, com o mesmo pensamento torto esquizóide, que o sodium fluoride talvez não produza intoxicação, mas o potassium nitrate, pôrra, esse sim, com esse nome tenebroso, se ingerido em grande quantidade, deve no mínimo produzir uma parada cardíaca. Pronto, fica livre do discurso bioquímico de Nanda. Irritado, é salvo por um pensamento mais realista. Cospe toda a espuma na pia, enxágua a boca, gargareja, cuspe de novo. Escancara a boca no espelho, como sempre gosta de fazer, verifica a branquidão dos dentes – Nanda tem razão, o creme dental é bom mesmo – e dispara:

– Pôrra, Nanda, para com essa verborréia, isto aqui não é um simpósio de óleos graxos antioxidantes, isto aqui é um momento para a gente se preparar para dormir! Mania a sua de inventar uma polêmica justo na hora de dormir. EU já estou prá lá de marraqueche!

Nanda, sem entender a razão de tanta espuma e tanta explosão emocional, pontifica: – Raul, você não sabe ter uma discussão calma e equilibrada, em torno de um assunto de extrema seriedade que diz respeito à nossa saúde. E para de dizer que eu invento histórias; é verdade, sou curiosa, interessada, pesquisadora séria, e não sou leviana em meus pontos de vista. Está provado que óleo de girassol é melhor do que óleo de canola!

Raul estribucha: – Caralho, Nanda, fica com a pôrra do óleo de girassol e me deixa dormir. Em gesto último de desespero, com uma das mãos pega a toalha de banho-escova de dentes-sensodyne sodium fluoride potassium nitrate-pente de osso presente de Nanda no dia dos namorados, e com a outra, os dois travesseiros necessários para acomodar sua artrose cervical que já dá notícias e vai dormir na suite de hóspedes.