Uma Festa (quase) no Céu, a Rena, duas Corujas e outros bichos.
(Caros Recantistas, há leituras não obrigatórias, porém elucidativas, deste conto : ‘A rena no presépio’ e ‘Rena de Presépio com orgulho sim, senhor!’)
Foi um momento especial na cidade: uma dupla sertaneja famosa se apresentou ao vivo e em cores, com pompas e circunstâncias (e recursos públicos), próprias a eventos deste tipo: um bairro inteiro foi isolado, o trânsito, reordenado, licenças para comercialização de comes e bebes foram expedidas sob módica taxa a ambulantes e afins, estruturas de palco, camarins e camarotes foram licitados e contratados conforme a (aviltada) 8.666 e montadas de acordo com o estipulado por produtores, empresários artísticos e outros donos do dinheiro, etc, etc, etc...
“Parece a Festa no Céu, considerou a Rena, com um diferencial: é acessível e democrática.” (A Rena tem se ocupado em conhecer, devagar e sempre, costumes e produções humanas; entre estas, estórias e ditos populares – “Uns luxos!”, declarou à Brilhante.)
Mesmo impressionada com o ‘diferencial’, em princípio não se animara em ir: “Gente demais, confusão na certa, vou não... ‘Boa romaria faz quem em sua casa fica em paz.’ Mas quando viu a animação de todos – as filas de formigas, tamanduás, onças pintadas, caçadores e mariposas – não resistiu: ‘A cavalo dado não se olham os dentes’, não é mesmo?” E foi trotando, toda engalanada, porque a ocasião pedia o melhor traje e o mais perfeito passo. “Além do mais, ‘cobra que não rasteja não engole caçote’... nem rato!”, arrematou a criatura, lá com seus chifres, satisfeitíssima com a contribuição à Cultura Popular.
Foi. Atravessou a cidade, venceu ruas, veículos, sinais e pedintes – e o cordão de isolamento; arranjou um cantinho próximo à entrada para os camarotes e ‘viu de perto para contar de certo’ a nova elite, tão enfeitada quanto ela, adentrar ao espaço exclusivo das autoridades e convidados de honra, para (supunha a Rena) beber uísque 12 anos, comer dos salgadinhos feitos pela banqueteira ‘da hora’ e assistir, de todos os ângulos privilegiados possíveis, os moços cantarem lindamente; antes, porém, alguns ‘mais iguais que outros’ iriam ao camarim abraçar os artistas, tietá-los e ao lado deles se deixarem fotografar, sorridentes, eufóricos, realizados, tranqüilos...
‘Suspiro de rato não derruba queijo’, matutou a Rena, alisando os chifres, e, pensando na ‘outra’ festa no céu, concluiu que ‘Deus não dá asa à cobra... ‘
A deslumbrada e atenta Rena a tudo via, e seus enormes olhos arregalaram-se mais ainda ao notarem um casal de Corujas – sim, C-O-R-U-J-A-S (a Globo garante que se soletra assim) – entrando alegremente no recinto e subindo de peninhas dadas a escada de acesso aos camarotes.
“Oh, oh, isso vai dar xabu!”, calculou, conhecedora desde o natal das entrelinhas políticas e sócio-ambientais em que alguns homens e bichos teimam em escrever a história local. E esperou.
E deu: o tão aguardado show sequer começara e vinham descendo a Escada da Felicidade, com caras de quem nem comeu e não gostou, Senhor e Madame Coruja, escoltados por policiais; bem atrás vinha o que pareceu à Rena um Urubu.
“Então não sabem, essas Corujas, que ‘em rio que tem piranha jacaré nada de costas’, oras?” (e bem aos poucos percebeu a ironia da tirada: o mesmo bicho que, como disse o penalizado Sapo “não pode entrar na festa no céu por ter a boca muito grande” foi o símbolo usado, com sucesso, na última pendenga entre duas aves da mesma família (a Coruja perdeu); portanto a metáfora da coruja-jacaré-em-águas-apiranhadas apresentou-se um tanto ou quanto perturbadora para a Rena, em incipiente estágio de abstração das coisas humanas).
Resolvida a questão no front vip, a festa foi um sucesso! Logo vídeos ‘bombaram’ no You Tube, a página eletrônica do Governo Municipal foi alimentada com fotos e fatos (não o das Corujas, lógico), e dizem umas línguas compridas que, em certos lares, os autógrafos dos moços estão pendurados ao lado do retrato do prefeito Jacaré.
Mas, ‘quem não sabe é como quem não vê’ e ‘cego pior não há que aquele que não quer enxergar’: o casal, ao invés de penetra, era apadrinhado de certo prefeito Jaguar, que teria cedido dois dos free pass recebidos da assessoria do Jacaré às Corujas, amigos de longa data.
Então, na segunda-feira, correu à boca miúda que o injustiçado par formalizou boletim de ocorrência contra o Urubu, por abuso de autoridade e constrangimento (falta de bom senso não está prevista em Lei: consta que o Urubu sequer quis checar explicações e meteu logo a polícia no imbróglio). E o Jaguar, devoto de São João e muito aporrinhado com o acontecido, parece querer a cabeça do Urubu numa bandeja: já se comprometeu a testemunhar.
A Rena comentou comigo que já aprendeu: ‘Quando o mar briga com a praia quem se lasca é o caranguejo.’
A curiosa criatura só não lembra se na verdadeira Festa no Céu havia porteiro...
Havia, Brilhante?