Aprontando das minhas no Bixiga.

Como já havia frisado em outras narrativas, nasci na Rua Santo Antonio (na verdade, na Maternidade São Paulo, mas criei-me no Bixiga), e por lá vivi até os meus vinte anos de idade, quando fiquei bobo, casei-me e vim para a Bahia.

Na minha juventude, a rua era de calçamento (paralelepípedos), postes de ferro com lâmpadas incandescentes e um emaranhado de fios que vinham e iam para toda parte. Já era uma rua de grande movimento de pessoas e automóveis, pois era uma artéria que se comunicava com os diversos bairros nossos avizinhados, além de estar bem próximo ao centro da cidade.

Um dos meus primeiros empregos foi na litografia do velho senhor Campanha, que ficava na mesma Rua Santo Antonio, próximo à minha casa, coisa de poucos metros. Era um senhor de aparência 'mafiosa' por sua indumentária sóbria. Sempre de terno e gravata, chapéu, bigodes médios e bem aparados, anéis de ouro e abotoaduras nos punhos da camisa. Só não me recordo se fumava charutos, estou em dúvida. Gente boa.

Eu trabalhava na litografia na função de "batedor de contato", serviço que resumia em fazer negativos para as placas de litogravura das propagandas de outdoors, cartazes, pôsteres etc. (o que seria a plotagem de hoje - mais moderna).

A oficina era pequena, mas suficiente para os serviços captados pelo senhor Campanha que tinha um faro muito bom para os negócios e, o seu "staf" de profissionais, muito bom.

Havia um funcionário que era como a um filho para o velho senhor Campanha, o "Filão". Jovem profissional, era responsável pelas montagens dos "lays-out" e arte finalista das "provas" e tinha que ter olhos de lince para detectar mínimas falhas, tanto nas magentas com nos retículas, devidamente ampliadas pelo "conta-fio" (quem é velho no ramo sabe a que me refiro).

Ao final do expediente, era costume ficarmos "de papo" por ali na oficina e depois irmos embora, cada um para seus destinos e, numa destas noites, o "Filão" desentocou, não sei de onde, um antigo transmissor do tipo que os repórteres esportivos da antiga Record, canal 7, usavam nos campos de futebol, para entrevistar e informar diretamente do meio de campo. Era um 'puta' de um transmissor "portátil", com uma antena que mais parecia uma vara de pescar e que devia pesar uns três quilos, mais ou menos. Na verdade, eram dois os que o "Filão" havia conseguido e transmitiam muito bem.

Foi aí que a "ideia" ascendeu em minha cabeça, quando disse ao "Filão": "Deixa eu ir lá fora e fazer as vezes de um repórter, entrevistando alguém, para ver como isso funciona..."

A ideia foi logo aceita e eu, com o transmissor nas mãos, ganhei a rua e saí entrevistando a todos com quem cruzasse no caminho até chegar às portas do restaurante de Giovanni Bruno, que também era na Santo Antonio (inicialmente).

E igual a um repórter, informei à "técnica de som" que estava na porta do restaurante do Giovanni e que iria entrar para entrevistar o seu proprietário, blá-blá-blá, etc e tal...

A preocupação nos "estúdios" da oficina era geral e, ante aos pedidos de não entrar, entrei... e, uma vez lá dentro, dirijo-me direto e decidido em direção ao proprietário que, surpreso, e antes de qualquer reação sua, fui logo falando:

- "Estamos aqui, senhores ouvintes da Rádio Record de São Paulo, PRA-9, e ao vivo, diretamente da Cantina Giovanni Bruno, no bairro da Bela Vista, nesta sexta-feira de clima agradável, para entrevistar este que é o mais tradicional restaurante italiano da cidade..."

Não é necessário dizer que lá, na "técnica/oficina/ao lado do dito restaurante, de som", o "Filão" táva tendo um "troço", o senhor Campanha já tinha comido seu chapéu e o restante do pessoal já estava com altas convulsões. Até a secretária do senhor Campanha já tinha desmaiado, quando volto a falar no transmissor:

- "Olá, Cardoso (nome fictício). De que sabor é a pizza que você quer encomendar daqui da cantina?"

Não sei exatamente o que houve, mas senti que o "Filão" resolveu entrar no clima da brincadeira e alimentou a bagunça, fazendo perguntas ao Giovanni, ao que ele respondeu como se estivesse sendo realmente entrevistado naquele momento.

Pergunta vai, resposta vem, a "entrevista" saiu uma beleza e, para dar mais "realidade" ao episódio, passei a entrevistar garçons, cozinheiros, clientes, quem e o que aparecesse pela frente.

Terminado o "circuito de entrevistas", diriji-me novamente ao Giovanni para me despedir e agradecer pela entrevista, o que foi feito, e ele também, na mais pura inocência, agradeceu a todos da Rádio e TV Record, convidando para aparecerem ao restaurante etc. e tal, e a nossa "técnica de som" retornando os agradecimentos e desejando felicidades etc. e tal, essas coisas.

Terminada e entrevista, voltei-me para o Giovanni e disse-lhe:

- "Seu Giovanni. Não se zangue comigo. Foi tudo uma brincadeira. Eu não sou repórter, esse transmissor não é da Record e na verdade, tudo não passou de uma brincadeira boba."

O Giovanni me olhou com uma cara que me deu até dor de barriga e, se eu não me controlo, a coisa estaria mais feia. Depois, sorrindo me disse:

- "No fá male. Io te conosco de qüi má, me fai un piacere, per favore. No conta nada de isto per ninguen, capicci? Io até qui gosté da tua incenacionne. Os cliente tão gostando molto e la lira cresce con tutti pedido para mangiare."

Quebrado o clima de apreensão e temor, e já saindo, Giovanni me detém dizendo: -"Aspéta... leva esta pizza per tutti quanti de vostra técnica di sonori e questo vino tamben... é un presente per te a la tua criatividade".

Agradeci (depois de novos pedidos de desculpas) e saí, com a pizza e o vinho em uma das mãos e na outra, o transmissor da "Record", saudando a todos os presentes, prometendo voltar em outra oportunidade e para nova reportagem (o que não aconteceu, é claro).

De volta à oficina, antes de qualquer tipo de admoestação ou bronca de quem quer que fosse, o Senhor Campanha, vendo a embalagem de pizza em minha mão (era uma "extra-famiglia"), foi logo perguntando:

- "É mista ou de mussarella?"

Respondi: - "E eu sei lá! Cavalo dado, não se olha os dentes".

A noite transcorreu até mais tarde um pouco, com boas gargalhadas e pedaços de pizza (que era mista), acompanhadas por boas talagadas de vinho Capelinha Tinto.

Quanto aos transmissores da "poderosa Rádio Record de São Paulo", estes ficaram por lá e serviram para outras investidas, mas isso é coisa para ser contada numa próxima oportunidade.