CRIADAGEM - PEÇA TEATRAL EM 3 ATOS
PERSONAGENS
Patroa
Criada
Padrinho
SINOPSE
A patroa é muito rica e recebe uma carta avisando da visita de um parente que ela não conhece. Imagina que o parente do falecido marido virá pedir dinheiro. A criada sugere que troquem de papéis, que dará um jeito no parente. A criada se passa por patroa e aproveita para humilhá-la pelos maus tratos. Os dias passam e o parente não chega. Até que chega outra carta. Esta carta é dirigida à criada e avisa que ela receberá a visita do padrinho que é muito rico. Ela propõe à patroa manter a troca de papéis. O parente da verdadeira patroa cancela a visita. O padrinho chega e se surpreende com a afilhada ter se tornado madame e aproveita para pedir dinheiro.
A patroa se sente vingada
ATO I
CENÁRIO: UMA SALA BEM DECORADA
CENA I -
CRIADA ESTÁ SOZINHA EM CENA RECLAMANDO DOS MAUS TRATOS DA PATROA
CRIADA: [fala para o público]:
- Que destino o meu. Trabalhar para essa megera. Não tenho folga.
- Trabalho de domingo a domingo.
[imitando a voz da patroa]:
- Fulana traz meu café! Fulana, esta roupa está mal passada! Fulana, a comida está salgada! Fulana você está gastando muito sabão! Vou descontar do seu ordenado o copo que você quebrou! Que mulherzinha intratável! E as amigas que ela tem! Cada uma pior que a outra. Quando se juntam aqui para o chá! Deus me acuda! Minhas orelhas ardem, parece que vão cair. O assunto sempre sou eu. Sou o saco de pancadas. Além de ouvir tenho de servir!
[senta-se no sofá]
Mas emprego está tão difícil que vou ficando por aqui mesmo. Tenho meu quartinho, minha comidinha, minha tevezinha. Se bem que tudo descontado do ordenado. Mas não gasto com condução. Todo mês troco os vales-transporte com o quitandeiro. Assim tenho uma poupancinha. Mas patroa igual a minha acho que não tem. É intratável, mimada, exigente. Mas é muito bobona também. Se eu quiser, eu engano ela fácil, fácil!
[de pé fala para o público]
- Ela é muito medrosa. Tem medo de ficar pobre. Morre de medo dos parentes do falecido marido contestar o testamento. Tem mão de vaca. Dinheiro contadinho. Só confia no tal advogado. Dr. Ulisses pra cá, Dr. Ulisses pra lá! Aquele tal que foi sócio no escritório do falecido. Homem muito correto. Boto duas mãos no fogo por ele. Pessoa muito distinta. E me trata com muita consideração. Resolveu uma pendência que eu tinha, sem me cobrar honorários. Homem distinto que nem o meu falecido patrão, que Deus o tenha na sua santa glória, amém.
CENA II
- PATROA ENTRA EM CENA E RECLAMA DA CRIADA
PATROA:
- Falando com quem? Ou falando sozinha outra vez?
CRIADA:
- Tava rezando. Com quem eu estaria falando?
PATROA:
- Rezando? Você não é chegada à rezas. Acho que nem tem fé, criatura. Nem caridade!
CRIADA: [fala para o público]
- Nem esperança!
PATROA: [fala para o público]
- Enquanto rezava o serviço atrasava, não é? Primeiro a obrigação depois a oração
- Ou devoção?
PATROA: [fala para a criada]
- Você é muito bem paga para trabalhar e não para ficar aí rezando e o serviço esperando. Olha essa vidraça, encardida, marcada com pontas dos dedos. Olha ali uma teia de aranha!
- E que poeira danada em cima do móvel. Você só limpa onde enxerga? Deixa eu ver se tem lixo embaixo do tapete
[A criada sempre atrás da patroa imitando seus gestos e olhando para o público]
[A patroa se vira de repente e topa com a criada que se assusta]
PATROA:
- Eu já ia me esquecendo. O que deu em você criatura? Eu mandei comprar goiabas brancas e você comprou goiabas vermelhas. Mandei comprar pepinos e você comprou jiló. Ficou maluca? Quem é que come jiló nessa casa? Eu devia mandar você de volta à quitanda e fazer a troca. Mas deixa estar! Vou descontar do seu ordenado. Ah! Sim, eu vou! E, antes que eu me esqueça, prepare um rocambole de ameixas para o chá de hoje. E não se esqueça de deixar as ameixas de molho no licor. Eu falei licor e não conhaque. Você sempre esquece o licor prefere gastar o conhaque. Prá sobrar licor e você beber? Ah! Sim! Prepare aquela saia para eu usar hoje no chá. Passe com cuidado o tecido e não deixe rugas. Ah! sim! Escove aquele sapato de camurça, vou usá-lo. Ah! Sim! Não deixe as torradas ficarem escuras. Ah! Sim...
[A criada vai saindo de mansinho e deixa a patroa falando sozinha]
PATROA:
- Mas não se esqueça de polir os talheres. Ah! Sim! Separe aqueles guardanapos de linho amarelo. Combinam com a geléia de damasco. Ah! Sim.
[se dá conta que a criada não está]
- Fulana! Como ousar me deixar falando sozinha? Fulana!
[dá de ombros]
[fala para o público]
- Mal educada! Criados! Não existem mais criados como os de antigamente. Hoje é diferente. Carteira assinada. Direitos. Justiça do trabalho. Benefícios e tudo o mais que estragaram os empregados. Eles só pensam nos direitos, os deveres, nada! E qualquer coisinha eles ameaçam com a tal junta do trabalho. Ainda bem que o Dr. Ulisses cuida dos negócios, se não eu estava frita nas mãos dessa criada! Mas se bem que ainda não deu motivo pra justa causa! Tem horas que ela me dá nos nervos. Parece que goza em me irritar. Pensa ela que me faz de boba. Que me engana. Mas se bem que não é de todo má pessoa. Sempre foi de total confiança do meu falecido marido. Que Deus o tenha na sua santa glória, amém.
CENA III
- CRIADA AVISA QUE TEM UMA CARTA PARA A PATROA QUE A LÊ
[A criada entra e se benze ao ouvir as últimas palavras da patroa]
CRIADA:
- Com licença, madame.
[fala para o público, gozando a cara da patroa]
- Estava rezando? Esqueci de lhe entregar estas cartas. Com licença!
[sai e se esconde]
PATROA [irritada]:
- Justa causa! Justa causa!
[Separa a correspondência, senta-se e pega uma carta para ler]
PATROA:
- Carta da Paraíba? Remetente fulano de tal. Eu não me lembro de conhecer alguém da Paraíba. Vejamos.
[Abre a carta e lê em voz alta]
- Campina Grande, março de 2000. Estimada prima
Tive conhecimento de sua existência apenas recentemente através de um feliz acaso. Quis o destino que nos conhecêssemos por intermédio de uma pequena nota publicada em jornal paulista que veio parar em minhas mãos embrulhando uma penca de bananas. Isto mesmo!
A nota se referia ao falecimento de seu esposo ocorrido algum tempo atrás. E como o meu nome e sobrenome são os mesmos de seu falecido esposo, julguei que não era apenas uma coincidência mas que poderíamos ser mesmo parentes. Minha avó sempre falava de um filho desgarrado que foi tentar a vida em São Paulo. Este filho dela seria o pai de seu falecido esposo e irmão de meu pai. O pai de seu falecido esposo, portanto meu tio deu-lhe o mesmo nome de nosso avô, o que o fez também o meu pai que faleceu antes que eu completasse meu primeiro aniversário. Eu e o falecido primo, seu esposo, alem do parentesco somos homônimos. Nossa avó é falecida há muitos anos e também todos os seus outros filhos, meus tios, que não deixaram descendência. Movido pela curiosidade busquei informações sobre a existência de outros herdeiros que seriam meus parentes com a esperança de ter ainda uma família. E apenas constatei ser o único herdeiro vivo, pois seu falecido esposo, como eu, não deixamos descendentes. Estou solteiro por opção religiosa embora não seja padre nem pastor. Estou planejando visitá-la para conhecê-la e por seu intermédio conhecer um pouco sobre meu falecido primo, meu homônimo e seu esposo. Não lhe quero causar embaraços, mas ficarei muito feliz em ser recebido nesta rápida visita, dentro de três semanas.
CENA IV
- A CRIADA PROPÕE UMA TROCA DE PAPÉIS
[A criada entra na sala e a patroa passa a ler o resto da carta em silêncio]
CRIADA:
- Desculpe, madame, ouvi parte de sua leitura e pelo que entendi a senhora brevemente receberá a visita de um parente.
PATROA:
- Estava escutando atrás da porta?
[fala olhando o público]
- Que criatura mal educada. Mas já que escutou, escutou bem. É a carta de uma pessoa que se diz ser parente ou primo de meu falecido marido.
CRIADA: [fala com ar de maldade na voz]
- E que diz na carta? Que é o único herdeiro da família!
PATROA:
- Ele diz ser herdeiro no sentido de ser o único representante vivo da família de meu falecido marido!
CRIADA:
- Sei não! Essas cartas, essas visitas! Esses parentescos de última hora! Sei não! Acho que a madame deveria desconfiar. Poderá ser um interesseiro pela herança. Pelo testamento. Sei não!
PATROA:
- Será? Será um golpe na pobre viúva?
CRIADA:
- Acho bom a madame se precaver. Pode mesmo ser um golpe. Ele quer dinheiro. Ou quem sabe contestar o testamento do falecido. Que Deus o tenha.
PATROA:
- Acho melhor me aconselhar com Dr. Ulisses.
CRIADA:
- Eu tenho uma ideia. Se a madame concordar, pode dar certo.
PATROA:
- Diga criatura. Você acha que eu devo fazer uma viagem? Ir pra Europa. Dubai, qualquer lugar?
CRIADA:
- Não senhora. Não precisa fugir. Podemos fazer uma troca. Eu me finjo de patroa e a madame finge ser a criada da madame. Recebemos o tal parente e vamos saber se ele quer dar um golpe. Ele vai se dar mal ao lhe conhecer assim como uma criada, pobre. Coitada. Pensando que a madame é a criada ele vai entender que o falecido, que Deus o tenha, deixou nadinha para a pobre viúva.
PATROA: [fala para o público]
- Será que vai dar certo?
CRIADA:
- Claro que vai dar certo. Ele diz na carta que vai chegar dentro de três semanas. Até lá a madame vai treinando para agir como uma criada de verdade. Não pode dar mancada senão o plano vai por água abaixo.
PATROA:
- E o que eu preciso fazer?
CRIADA:
- É fácil, fácil. A madame é inteligente e vai aprender bem rapidinho. Vai ficar uma criada bem jeitosa. E se algum dia ficar pobre e precisar trabalhar já estará acostumada.
[fala para o público piscando um olho]
- E madame vai estar no ponto!
PATROA:
- Deus me livre de ficar pobre. Já fiquei uma vez e basta!
CRIADA:
- Então o jeito é mesmo trocar de lugar comigo. Caso o parente do falecido, que Deus o tenha [benze-se], tenha certeza que a madame é rica, então ele vai mesmo lhe tirar tudo e aí a madame fica bem pobrinha. Já imaginou a madame sem o conforto a que se acostumou?
PATROA:
- Acho mesmo que você tem razão. E quando a gente começa o treinamento?
CRIADA: [tirando o avental]
- Agora mesmo.
PATROA:
- E o chá de hoje com as amigas? Como vou receber? De avental?
CRIADA:
- Pois cancele o chá. A madame telefona para as amigas e dispensa. Diz que está indisposta, está com enxaqueca. Ou TPM. Diz qualquer coisa
PATROA:
- Mas, três semanas sem chá, sem amigas. Que remédio! Vou cancelar o chá e telefonar para as amigas.
[veste o avental e sai]
CENA V
- A CRIADA SE TRANSFORMA EM MADAME
CRIADA: [fala para o público]
- Ainda bem que ela topou a idéia da troca. Ela vai sentir na pele o que é ser uma criada.
[começa a andar pela sala vistoriando; pegas jóias da patroa que estão esquecidas sobre uma mesinha e vai se enfeitando]
- Vou me enfeitar. Vou me embelezar; comer e beber do bom e do melhor. E dormir naquela cama enorme. Delícia de vida!
[volta a falar para o público]
- As roupas dela me servem. Todas. Já experimentei todas. Os sapatos, que pena! Não me servem. Não posso calçar. Meus pés são grandes. Sempre andei descalça ou de chinelos de dedo. Meus pés não cabem naqueles sapatos lindos italianos, franceses. Um luxo que eu não posso desfrutar.
[recomeça a andar pela sala vistoriando e vai trocando tudo de lugar. Muda a decoração do ambiente]
- E vou começar minha vidinha de madame arrumando as coisas do meu jeito! Esta cadeira aqui, este quadro ali, este vaso acolá. E trocar estas cortinas horríveis, sempre fechadas!
[recomeça a falar para o público, imitando a patroa e empinando o nariz, fazendo poses]
- Fulana, esta comida está horrível, com gosto de papel! Fulana, meu vestido está todo manchado! Fulana, eu vou descontar do seu ordenado o copo quebrado. Fulana pra lá, fulana pra cá. Ninguém merece!
[senta-se no sofá]
FIM DO I ATO
II ATO
CENÁRIO: A MESMA SALA COM A DECORAÇÃO ALTERADA
CENA I
- PATROA TRANSFORMADA EM CRIADA
[a patroa está vestida com as roupas da criada]
PATROA: [fala para o público]
- Que má ideia a minha foi fazer esta troca com a criada. Estou morta de tanto trabalhar. E ainda tenho de aturar a falsa patroa vestindo minhas roupas! E o que ela fez com a minha decoração! Gastei uma fortuna com decorador e ela fez este estrago! E ainda mais, queria trocar as cortinas! Que atrevimento!
[olha para as mãos]
- E minhas mãos, minhas unhas quebradas, calos, feridas. Meus cremes. Detonou todos. Meus perfumes. Minha banheira de massagem! E os banhos demorados!
[recomeça a falar para o público]
- O meu cabelo! Que saudade de minhas amigas. Das tardes de chá e de biriba. Poxa! Como três semanas custam a passar! E o parente do falecido, que Deus o tenha, não deu mais sinal de vida! Eu me esfalfando na cozinha. Como aquela criatura come! E o que come!
[senta-se no sofá]
- Ai minhas costas. Que dor! Acho que vou morrer de tanto trabalho e exploração!
CENA II
- UMA CARTA PARA A CRIADA
[a criada entra vestida com as roupas da patroa que está sentada no sofá]
CRIADA:
- Falando sozinha? Ou está rezando? E ainda sentada no meu sofá!
[a patroa se levanta do sofá com dificuldade]
PATROA:
- Estou já arrependida da troca que fiz com você. Estou morta, estou um caco de gente. E o tal parente não mais deu notícia. Acho melhor destrocar e eu quero virar patroa novamente. Chega de exploração! Se o homem aparecer e questionar o testamento eu peço para Dr. Ulisses propor acordo.
CRIADA:
- Nem pensar. Vai dar de bandeja pra um desconhecido o patrimônio que a madame e o falecido, que Deus o tenha [se benze] juntaram a vida toda? É melhor uma boa briga que um mal acordo. Quer ficar pobre? Quer ser criada pra sempre? Quer? Tem certeza?
PATROA:
- Deus que me livre disso. Tudo bem! Eu aguento mais uns dias. Só mais uns dias.
[entrega uma carta para a criada]
- E tem uma carta para a madame.
CRIADA: [espantada fala para o público]
- Cartas para mim? Faz anos que não recebo cartas!
[pega a carta com a patroa, abre e começa a ler em voz alta]
- Fortaleza, março de 2000.
Caríssima afilhada. Estou viajando para o Rio de Janeiro a negócios e gostaria muito de rever a minha afilhada depois de tantos anos. Sua mãe me forneceu seu endereço que é próximo ao hotel XX em que ficarei hospedado. Estarei aí na próxima semana. Espero encontrá-la bem. Até breve. Seu saudoso padrinho.
PATROA: [fala para o público]
- Este hotel é 5 estrelas. Só se hospedam por lá os endinheirados e os artistas que aparecem na CARAS. Não é hotel barato! Um luxo!
CRIADA:
- O meu padrinho deve estar muito bem de vida, então! Pra ficar num hotel de 5 estrelas! Deve ter acertado na mega sena, na loteria. Mas diz que vem fazer negócios!
PATROA:
- Que negócios ele tem lá na terra de vocês?
CRIADA:
- Ele sempre criou cabritos e se meteu na política.
PATROA:
- Então ele deve estar forrado de grana! Político sempre se dá bem.
CRIADA:
- Pode mesmo ser. Ele diz que estará aqui na próxima semana.
PATROA:
- E o parente do falecido também estará chegando nesta data. Na semana que vem também termina o prazo de três semanas que ele disse na carta.
CRIADA: [fala para o público]
- E eu ainda serei a patroa!
PATROA: [falando para público]
- Eu ainda serei a criada. Que remédio? Que sina! Que destino!
CRIADA: [senta-se com pose no sofá]
- A gente poderia então preparar um bonito jantar para receber os dois visitantes. O que acha? A gente prepara um cardápio típico!
PATROA: [fala para o público]
- A gente? Quer dizer EU!
CRIADA: [fala para o público]
- A gente. EU claro que vou ajudar a preparar o jantar porque a madame na cozinha é um desastre completo. O plano vai por água abaixo. A madame como cozinheira é um vexame só! Nada que prepara presta. Ou é salgado ou é queimado ou fica cru. Ave Maria! Eu até emagreci um pouco com essa dieta forçada!
PATROA:
- Claro. O seu cardápio é uma porcaria só! Foge a qualquer lógica nutricional. Mocotó, torresmo, vaca atolada, caruru, pé de porco, pescoço de galinha! E por aí vai.
CRIADA:
- É uma comida de sustança! Mas a madame deixa queimar de pirraça! Parece vingança!
PATROA:
- Seu gosto é nada saudável. Puro colesterol, gordura saturada. Veneno!
CRIADA:
- Melhor que aqueles pratos do seu gosto que mais parecem comida de boneca. Cada nome! Filé de Sam Pierre, musselina, fricassê e por aí vai.
PATROA: [suspirando]
- Que saudades de fricasse, canard gratinê, poire flambee, camembert, cabernet.
CRIADA:
- Chega de saudade! Ao trabalho!
[levanta-se e vai passando o dedo pelos móveis]
- Olha a poeira acumulada! Olhas as teias de aranha! Olha os vidros embaçados!
[fala para o público]
- Mas não posso descontar do seu ordenado!
[suspira e sai]
[a patroa faz uma careta e volta a se sentar no sofá]
FIM DO II ATO
ATO III
CENÁRIO: mesma sala
CENA I
- PREPARATIVOS PARA A CHEGADA DO PARENTE DA CRIADA
[A patroa se esfalfa trabalhando na arrumação da sala para o jantar e a criada se prepara com maquiagem, etc.]
PATROA: [para o público]
- Não sei por que manter esta farsa já que o parente do falecido, que Deus o tenha na sua santa glória, amém, adiou a visita que faria hoje. Adoeceu o coitado! Doença grave!
CRIADA:
- Não dá pra desistir agora já que o meu padrinho está chegando para o jantar. A mesa está quase arrumada. E eu também estou quase pronta. Falta um perfumezinho bem suave. A comida já está pronta! Tudo pronto. Não dá pra desistir agora.
PATROA:
- Mas você telefonou para o hotel XX e o seu padrinho não está hospedado lá!
CRIADA:
- Mas ele ligou esta manhã confirmando a chegada e que estaria aqui hoje às sete em ponto para o nosso jantar!
PATROA:
- Então ele viria direto para cá antes de se hospedar no hotel?
CRIADA:
- Não sei o que aconteceu, mas no hotel ele não apareceu!
PATROA: [fala para o público]
- Isto está me cheirando muito mal!
[o interfone toca e a patroa atende]
PATROA: [fala para a criada]
- É o porteiro!
[fala ao interfone]
- Pode deixar subir.
CRIADA: [para o público]
- O padrinho chegou, felizmente!
CENA II
- A CHEGADA DO PADRINHO
(entra o homem mal vestido e barba por fazer)
[A patroa leva a visita ao sofá onde a criada está sentada com muita pose]
[o padrinho se encaminha para a criada que se levanta do sofá muito desapontada]
[abraçam-se timidamente]
[sentam-se no sofá e a patroa fica afastada em pé]
PADRINHO:
- Então minha afilhada. Que bons olhos a vejam. Como está bem de vida! Que bela casa! Que criada simpática você tem!
[a patroa de pé olha para o público com expressão zangada]
CRIADA: [um pouco arredia]
- Meu padrinho, o que lhe aconteceu? Sua roupa, sua cara! Que aspecto horroroso, desculpe a franqueza.
PADRINHO:
- Minha afilhada, tudo deu errado comigo!
CRIADA:
- Errado como? O que aconteceu? Foram os negócios? A política?
PADRINHO:
- A criação morreu tudo de peste. Sobrou nenhum bichinho pra contar a história. E a política. Gastei o que tinha e o que não tinha pra me eleger. Consegui me eleger deputado.
PATROA: [fala para o público]
- Deputado, com essa cara?
CRIADA: [mais animada]
- Pelo menos o padrinho se elegeu deputado.
PADRINHO:
- Mas eu fui cassado!
PATROA: [se dirige ao público]
- Eu sabia! Aquela cara não me engana. Deputado com cara de pobre? Nunca! Isto não existe aqui neste país!
CRIADA: [consternada]
- Mas cassado por que meu padrinho?
PADRINHO:
- Fui acusado por um crime que não cometi sozinho. Você sabe, alianças custam dinheiro! Suborno, corrupção, de tudo isso fui acusado e sem provas. Recorri mas não deu em nada. Fui um bode expiatório da oposição. Depois de tudo que eu fiz pelo meu partido!
CRIADA:
- E agora? O que o padrinho vai fazer?
PADRINHO:
- Eu agora vim apelar para os bons sentimentos de minha afilhada, que está muito bem de vida ao que me parece. Com certeza está muito bem.
[levanta-se e olha em torno da sala]
- Minha afilhada possui um belo patrimônio. Obras de arte. Decoração cara e de muito bom gosto!
[torna a sentar-se]
[a patroa vai assentindo com a cabeça cada afirmação do padrinho, parece estar gozando com a cena]
PADRINHO:
- Minha afilhada virou uma madame. Quem diria! O mundo dá voltas e nos prega cada peça!
PATROA: [interrompendo]
- Com licença. Concordo com o senhor. A vida realmente nos prega muitas peças. A vida às vezes é uma grande farsa!
CRIADA: [fala para a patroa]
- Não se meta no assunto. Cale-se!
CRIADA: [fala para o padrinho]
- Mas em que eu poderei ajudar o meu padrinho?
PADRINHO:
- Poderia me fazer um pequeno empréstimo de dinheiro para o seu padrinho se aprumar de novo na vida. Comprar umas cabrinhas, uns bodinhos, bode não, digo uns cabritinhos e começar nova criação. Quem sabe uns porquinhos, umas galinhas.
[a patroa dá muitas risadas olhando o público]
CRIADA:
- Mas o senhor se engana, padrinho. Não sou essa madame endinheirada que está aqui na sua frente. Não sou a pessoa que o senhor pensa que sou.
PATROA: [interrompe e se dirige à criada]
- A madame pode ajudar sim, como não? Pode doar ao seu necessitado padrinho aquele seu bauzinho cheio de dinheirinho e mais aquele cofre de porquinho que quase estoura de tantas moedas de um real! É dinheiro vivo que a madame tem em casa e vai lhe fazer nenhuma falta.
CRIADA: [gaguejando]
- Mas eu fui juntando esse anos todos pra comprar uma casinha.
PATROA:
- Mas a madame não precisa de casinha, já tem muitos imóveis alugados, muitos bens. Um grande patrimônio. Não precisa ser avarenta que Deus lhe castiga. Pode sim emprestar ou mesmo doar para seu padrinho estas economias. Esperem que eu vou lá dentro buscar.
[sai de cena]
CENA III
- A VINGANÇA DA PATROA
[a patroa retorna à sala com os cofres e os entrega ao padrinho]
PATROA:
- Acho que Isto vai lhe servir pra recomeçar a vida.
CRIADA: [se dirige ao público]
- Mas, que remédio?
[o padrinho abraça a criada]
[a patroa convida a sentarem-se à mesa para o jantar]
PATROA: [retira o avental e fala para o público]
- Pois vamos jantar e comemorar este final feliz para o padrinho. Vamos festejar. A farsa terminou. Estou vingada. Amanhã será um novo dia. Libertas quae sera tamem!
[dirige-se ironicamente à criada]
- A madame poderia fazer as honras da casa e servir o nosso jantar?
[a criada muito chateada sai da sala]
[A patroa apresenta uma garrafa e pede ao padrinho para servir o vinho]
PATROA:
- Vamos brindar! A farsa acabou!
[patroa e padrinho brindam com o vinho]
PADRINHO: [toma um gole do vinho e fala para o público]
- Não sei que farsa é essa, mas sei que esse vinho não é “farso”.
É muito bom! Saúde!
FIM
FECHA A CORTINA
Em junho de 2009