Que Cara De Pau...
Estávamos nos anos oitenta, período de recessão na economia do presidente Figueiredo. Inflação lá em cima não dando tréguas para os nossos ínfimos ganhos. Família prá criar. Nesses momentos você procura fazer o possível e o impossível para segurar a onda. Assim foi também comigo. Apareceu um bico através de um conhecido que tocava nas noites de Belo Horizonte. – Preciso de alguém para me acompanhar com violão elétrico e fazer segunda voz em algumas canções- disse ele.- São somente três noites. Temos também que acompanhar em alguns números o Vitório que canta boleros e sambas canções. - Pensei: O Pedrinho é excelente guitarrista, o que me dá segura. Os números eu os conheço, por que não? E lá fomos ensaiar por dois dias. Foi quando conheci o tal Vitório. Um gay bastante extrovertido e com uma curiosidade. Era desafinadíssimo quando cantava qualquer outro estilo que não fossem os boleros e sambas. Nesses dois gêneros era uma fera, parecia entrar em outro mundo quando cantava. Se alguém lhe aplaudisse cantava procurando de onde vinham as palmas e quase se desconcentrava, tamanho era o ego. Disse na primeira noite de apresentação: - Vamos lá, temos que vender nosso peixe!- Falou em tom resignado como se fosse para um sacrifício, mas era uma das vertentes da sua vaidade. Tocamos e cantamos tudo muito bom, tudo bonito. Nessa época eu tinha um fusquinha e que foi a nossa condução para ida e volta das apresentações. Descobri então nas conversas entre eles que moravam juntos e dividiam as despesas,etc. Fiquei também sabendo que o Vitório sofrera acidente sério de trânsito e tinha verdadeiro pânico de velocidade. Ao final da primeira noite já dentro do carro quando voltávamos para casa perguntei: E o cachê? Vitório respondeu: - O dono da casa vai acertar tudo na terceira noite. – Paciência, pensei! Ao final da terceira noite quando voltávamos perguntei novamente pelo cachê. Outra vez foi o Vitório quem deu as coordenadas: - Olha, sabe o que é? Nós só poderemos acertar com você semana que vem. Acabou tudo lá em casa, estamos sem gás e comida. A luz tá quase cortada! – Argumentei: Foi outra coisa que tratei com o Pedrinho. Ainda tive despesas para fazer essas apresentações. Vocês não pagaram nem taxi. - É eu sei, mas é só um pouquinho de paciência e acertaremos tudo, disse ele. - Eram duas horas da madrugada, eu cansado e tinha que trabalhar no outro dia. Estávamos descendo a Avenida Amazonas, na altura do bairro Barroca. Foi subindo uma raiva surda e de propósito acelerei ao máximo o carro na descida. Olhei-o de soslaio e vi feliz seu desespero. Foi quando ele começou com uns estrebuchos, dando a entender que estava recebendo um espírito, e era de preto velho. Começou assim: - Sssiiiii, hum, hum!- Disse – sabe, mizifio tá precisando alevá o tomovi no consertadô, tá cum defeti. Tem que trocá pecinha que tá fazendo ele corrê dimais mizifio! – Está bem preto velho, vou levar logo que receber meu cachê, respondi! Então o Vitório desenhou mais uns chiliques a dizer que tinha voltado ao normal. Disse então: - Geeennnteee, vocês viram? O preto velho baixou só pra nos alertar. Obrigado meu preto, vou acender uma vela procê ainda hoje, viu? Vim para casa com um gosto de decepção na boca e pensando no Figueiredo e sua economia... Até hoje estou esperando meu cachê!!!