Eu enquanto pessoa a nível de ser humano (repostagem)

(Um continho do vigário)

A madrugada já ia alta. E a desalentada mestra, apesar de andar sonhando acordada que finalmente era hora de ir dormir, continuava sentada em frente à tela do computador. Faltavam ainda umas quinze monografias pra revisar.

"Eu enquanto pesoa a nivel de cerumano coloco que o diferensial da proposta agrega valor ao imajinario no subiconçiente coletivo da comunidade carente no contesto da orbi urbana da posmudernidade".

A esta altura, o desespero e a indignação já deram lugar a um torpor quase indiferente. Procura e encontra na sua caixa de entrada a resposta da aluna à sua mensagem enviada há uma semana:

"feçora si nen vc intendeu km eh q eu vo entede"

Boa pergunta. Ainda que sem ponto de interrogação.

De fato, nestes tempos de ctrl+c, ninguém mais sabe dizer o que quis dizer. Por isso ninguém mais SE forma... apenas forma... o quê, sabe Deus!

Há quem defenda que a língua vernácula é que deveria ser a nossa

língua pátria oficial, em contraposição ao chamado "preconceito

linguístico" dos que falam erudito. Por mim, tudo bem. Seria muito interessante ler uma tese sobre neurocirurgia escrita em vernaculês.

"U célebru é um trem múintchu importânti nus pissuá tudu. É eli qui

guverna u rins, u istambu, u figu i as tripa tudu. U célebru tem uma

carrada di neurônu quié u qui fais u cabôcu assuntá. É eli qui fais

ocê sabê dôndi quié as isquerda i as diretcha, é eli qui fais ocê andá

di bicicreta sem distrambeiá i distabocá nu xãu. Pa operá u célebru,

ocê tem di pegá u cabôcu, dá umas nestezia preli drumi i num sinti dô.

Adispois queli drumi, é ondi qui ocê pega i abri u quengu du cabôcu i

iscarafunxa lá dentu pa vê ni dondi qui tá u tumô. Adispois di tirá u

tumô fora, ocê ispera u cabocu cordá pa vê se deu certu, pruque eli

podi cordá i ficá todu trapaiadu o bobu. Si eli num cordá, é pruque

eli impacotô."

Pensando bem, acho isso preferível a:

"Em que pese a transubstanciação do aspecto unívoco na preponderante haplotomia heideggeriana intrinsecamente revinculada à resipiscência dicotômica do substrato filogênico, associada inapelavelmente à comburida virtualidade keiserlinguiana no seu modo mais semiótico e etereamente regougante..."

Eu deveria ter feito aquele concurso pra câmara... Hoje estaria ganhando muito bem, obrigada. Não há muita diferença entre aturar alunos desinteressados e semianalfas, colegas ególatras e pretensiosos, e aturar deputados e senadores corruptos, a não ser pelo salário.

O dia começa a clarear. Com os olhos vermelhos, ela se arrasta até a cozinha. Enquanto passa o café, fica imaginando um mundo melhor depois das reformas que se impõem com urgência.

A faxineira chega.

-- Selycleide, quero falar uma coisa muito importante com você.

-- Ai, Dona Dotora, foi sem aquerê!... Tava c'as mão insabuada e as 12 chicrinha c'os pratim, mais o búli e a leiterinha, caiu e crebô...

-- Não, Selycleide, é outra coisa... É muito, muito importante que você não vote de novo no mesmo candidato em quem votou da última vez.

-- Cuma?

-- Se nenhum desses deputados e senadores safados for reeleito, há uma grande chance de se renovar a política no Brasil!

-- Tá bão... é justo... -- ela responde, apesar de não ter entendido muito bem -- Só tem um pobrema, Dotora Dona, eu não si alembro ni quem qui eu votei. Só mi alembro que tinha uma popraganda bunita na televisão. E que o patrão do Maicon Wesleyson, meu home, mandou ele mais os colega tudo votá num bacana lá, qui ele nem si alembra quem que é, e que se o bacana ganhava, eles ia levá de presente um radim aipódi... o bacana ganhô e o aipódi qui é bão, nem chêru!

Não tem jeito. É filme de terror. Se correr, o bicho pega, se ficar o bicho come. Sem nem ao menos fazer um carinho, dar um beijinho, telefonar no dia seguinte. Come a seco mesmo, na brutalidade.

É isso que os sucessivos desgovernos deste país fazem com a gente -- um estupro selvagem.

O povo mesmo é trabalhador, é um bravo e nunca desiste!

-- Dona Dotora, a sinhora me adiscurpa, mais é que eu mais o Maicon tá disistino de trabaiá...

-- Mas por quê, Selycleide Abadia?!?

-- É que ocê paga p'a eu um salaro mimo, o patrão do Maicon tumém... e se eu mais o Maicon pára de trabaiá, nóis ganha siguro disimprego, bolsa famia, vale gás, tique transporte, tique alumentação, lote no Recanto das Ema e ainda defende algum pur fora indo batê palma nos comiço dos candidato.

Mundo cruel e injusto, este... Agora, além de ter que continuar a lidar com a manada de praxe de alunos semianalfas, indisciplinados e desinteressados, vou ter que limpar, passar, cozinhar...

Eu devia ter me casado com o Serjão... Ele passou pro Banco Central logo depois de entrar pra UnB e hoje mora no Lago Sul. Teria uma vida de princesa, só batendo perna no Parkshopping e comprando livros e CDs na Fnac.

Mas a vida real não espera e conclama. Hora de ir pro batente mais uma vez. Quer dizer, hora de pegar no batente em outro lugar, porque o batente de casa não dá mais tempo. Pega um ônibus lotado até a faculdade particular em Valparaíso. De lá, volta pro Plano Piloto e dá aula numa faculdade particular na Asa Sul e, mais tarde, em outra no Lago Norte. E no caminho sonha mais uma vez com aquela bolsa de estudos nos Estados Unidos.

Mesmo sabendo que é um sonho impossível, porque com aquela cara e sobrenome de árabe...

N.A. - Este texto NÃO É autobiográfico. A única coisa que tenho em comum com a personagem é o fato de revisar, como autônoma e majoritariamente, textos acadêmicos. O resto é pura ficção, embora seja baseada em fatos tristemente reais.

Maria Iaci
Enviado por Maria Iaci em 11/04/2010
Reeditado em 11/04/2010
Código do texto: T2190134
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