Chaplin brasileiro

Cena 1 – Visão aérea da rua numa cidadezinha do interior. Narrador: Fiz este filme porque devo um milhão ao banco. Sei que devo um milhão porque fiz um empréstimo de sete mil reais há dez anos atrás e a dívida fermentou tanto que me tornei incapaz de pagá-la. Proibido por lei de colocar uma placa dizendo: aceito investimento ou procura-se uma rede financeira tomei a decisão de criar este filme mudo. Mudo e indefeso. Cena 2 – Um mendigo, uma rua, um poste, uma garrafa e um copo. O dia está amanhecendo. O galo canta, todos estão acordando para o trabalho. O mendigo prepara os jornais no chão para dormir e iniciar o seu descanso do dia. Dá uma última bicada num gole rápido e lírico. Arruma o copo e a garrafa ao seu lado e deita-se na sarjeta como se fosse o leito de um palácio. Cena 3 – O sonho: Bem vestido à rigor segue num carro enorme até o banco para solicitar um empréstimo. O carro estaciona e os guardas logo se movimentam para lhe abrir a porta. Um deles cai sentado quando ele sai. Há um alvoroçamento. Todos querem lhe agradar. Ele senta e o gerente levanta. Ele se levanta e o gerente senta. Alguém lhe traz café, ele pede uísque. Vem uísque. Ele tira um charuto da lapela, três isqueiros surgem para acendê-lo. Uma grande baforada espanta todos provocando tosse geral, finalmente olha para o gerente e solicita um gordo empréstimo. O gerente lhe impõe condições, antes precisará assinar papéis. O gerente lhe estica um papel que ele examina com cuidado trazendo cada vez mais perto dos olhos. Repõe em cima da mesa e faz muitas vezes o “não” com o indicador. Algo parece estar muito errado. O gerente está limpando o suor. Ele levanta apontando firmemente para o papel sobre a mesa com ar furioso. Tem uma mosca esmagada no lugar da assinatura. O gerente sorri amarelo, troca o papel, ele assina, troca o papel, ele assina novo papel que vai se acumulando numa resma enorme ao lado do gerente. O gerente abre a gaveta e tira quatro maços de dinheiro que é colocado ao lado da resma demonstrando um tamanho representativo entre a papelada gerada e o dinheiro obtido. Cena 4 – Um cachorro latindo acorda o mendigo puxando-o pela manga do andrajo. O cão lhe faz notar que está dormindo perto de um banco. Coçando os olhos ele lê a placa dizendo “Banco dos juros altos”. Levanta-se, dobra e guarda seus jornais como se fossem lençóis, toma um trago como se fosse café. Toma coragem para ir até lá. O cão ficará de fora enquanto ele dará três voltas na porta rotativa de vidro até pegar o cachorro que havia ficado do lado de fora. Os guardas começam a caçada dos dois colocando-os para fora. Na cena de plano geral na rua uma fila imensa dobra a esquina com milhares de operários com ar de cansaço e resignação. Impelido ele baterá a cabeça contra um poste, desmaiando. Cena 5 – Sonho do desmaio: Após o empréstimo o homem bem vestido abre um negócio. Um correio e a imagem mostra uma pequena agência postal onde todos os funcionários estão lambendo selos ao mesmo tempo freneticamente. Tudo parece ir bem. O carteiro entra e sai com amontoado de cartas dizendo com alegria que entrará em férias. Um homem de baixa estatura e com cara de feroz entra na agência para receber uma caixa de médio porte. Abre ali mesmo cheio de contentamento. Trata-se de um computador. Ele diz: vou abrir um cyber aqui ao lado. Apontando para a lateral com o polegar. As mesmas senhoras que postavam cartas surgirão sentadas com as mesmas fisionomias caricatas no cyber. O dono do correio começa conferência da contabilidade. Como pagar empréstimo vendendo selos? Verifica o livro caixa tomando um susto. Os guardas chegam num caminhão e levam tudo o deixando sentado sozinho no chão do estabelecimento. Um cãozinho entra com um selo colado no focinho. Cena 6 – O mendigo acorda e procura um advogado para o sonho. Sempre bebendo vê uma placa com olhos distorcidos onde se lê: Advogado. A placa sai de foco e retorna: ex-psiquiatra e advogado. Aviso: só atendemos causas ganhas. Bate na porta e diz para o advogado que está com abstinência de dinheiro. O advogado insiste, apontando enraivecido para a placa: só atendemos causas ganhas.

Narrador: E assim na unidade de tratamento intensivo o capital vai parar nas ruas sofrendo de abstinência monetária. Bem. Quanto à bebida? Vem depois para ajustes. FIM