Morrer pra quê?

Dois tiros. Foram dois tiros que tiraram minha vida. E te falar: por alguns minutos foi difícil acreditar que era assim que se morria. Coisinha mais sem graça.

Não houve a tal da luz branca qual eu deveria seguir. Não houve as tais cornetas celestiais me servindo de trilha sonora para minha tribulação. Eu estava nervoso e ali diante de eu mesmo. Morto. Em um beco escuro e sem graça.

Mas agora sou uma alma, e nesse instante estou diante de uma fila de almas, todas esperando alguém que ainda não sei quem. Só sei que estão mortos. E se comportam como tais. Todos com seus olhares perdidos. Todos lamentando e gemendo. Antes deveriam ser pessoas quer curtiam a vida, que bebiam todas no final de expediente de sexta-feira. Agora devem se arrepender de tudo de errado que fizeram. Sexo sem camisinha, dívidas, torcer pelo time que torciam. É como o cara que vai desativar uma bomba e fica na duvida entre o fio azul e o vermelho. Ele escolhe o azul, explode, e depois de morto fica se perguntando o que diabos o levaram a escolher o fio azul.

Sou o penúltimo da fila. Depois de mim chegou um velho com duas marcas de tiro no pescoço. Horríveis. As minhas foram na barriga. Minha blusa as está escondendo. Ele deve ter uns sessenta anos. Aproveitou bem a vida. Ao contrário de mim, que morri aos vinte e dois. Nem vou ver a copa da África do Sul. Nem muito menos a última temporada de “LOST”. Nunca vou saber o que é aquele monstro de fumaça, e o que é aquela ilha maldita que me fez ficar preso na frente da televisão por cinco anos!

Morri cheio de dúvidas. Nunca vou saber, por exemplo, porque os mortos dos filmes arrastam correntes. Ou por que a rede Globo tem mania de contratar pessoas que fazem sucesso nas outras emissoras para simplesmente os colocar na geladeira sem fazer exatamente nada! Só pode ser sacanagem!

Morri sem saber como funcionam os caixas eletrônicos. Como eles sabem as notas que tem que nos dar. Por que às vezes nos dão vinte em nota de vinte e às vezes em duas notas de dez! Será que tem algum anãozinho banqueiro lá dentro fazendo a manutenção de nosso dinheiro? Eu vi no filme do “MIB –Homens de preto 2” que nos correios era assim. Só que não eram anões, eram aliens mesmo.

Tomara que essa dúvidas sejam esclarecidas lá no céu, ou seja lá para onde eu estiver indo,nem sei aonde estou. No momento ainda estou na fila. Há um silêncio perturbador aqui. Os mortos pararam de gemer. E tem uma criancinha do outro lado desse salão me encarando. Se eu estivesse vivo e ela me encarasse desse jeito, me borraria de medo. Sempre tive medo de criancinhas muito brancas. Não sei se porque aqueles filmes de hotéis mal assombrados usem desse estereótipo para seus fantasminhas , ou por simplesmente minhas raízes escravas do passado ainda sentem medo dos brancos. É eu sou negro!

Aliás, ao contrário daquela novela da rede Globo “A Viagem”, aonde no paraíso só havia brancos, até que aqui há uma boa mistura de raças. Vi uns cem negros quando passei por uma espécie de guichê, e dois índios sentados sobre um tronco caído lá fora. Engraçado que nem sei como vim parara aqui. Tomei o tiro e de repente estava aqui, sentado nesse banco, nesse salão que mais parece um saguão de aeroporto. Não sei por que reagi àquele assalto. Minha mãe sempre me dizia para entregar tudo. Mas é difícil se livrar dos nossos bens materiais. Nessas horas que eu queria ser budista. Dizem que os caras não se ligam em nada. Se perderem um braço eles logo arrumam um mantra que os faça superar a perda. Deve ser ótimo viver assim.

Acabei de avistar duas crianças sobrevoando minha cabeça. Devem ser anjos. Vestem roupas claras e não tem nenhuma rodela luminosa em cima de suas cabeças. Carregam bolsinhas parecidas com as dos carteiros. Seguiram na direção da porta onde começa essa fila. Estou curioso para saber o que acontece ali.

Será que é ali que somos colocados de frente com tudo que fizemos de errado durante a vida. Morri jovem, mas acho que fiz mais merda do que muito fantasma aqui. Eles devem saber do dinheiro que peguei da gaveta de minha avó quando ela morreu. Se eles sabem, ela provavelmente também deve saber. Só falta eu ter que aturá-la falando no meu ouvido até depois de morto. Ela tinha morrido, o dinheiro ia acabar esquecido na gaveta. Peguei mesmo. E usei para boas ações. Comprei minha bike, comprei um Playstation 3 mês passado... E morri! Muito bom. Compro o vídeo game dos meus sonhos e morro! Só pode ser castigo. Minha vida era uma merda, num disse. Morrer foi só a continuação do tédio que minha vida fora.

Na minha casa nunca tinha gente. Papai trabalhava e minha mãe vivia no salão aonde trabalhava de manicure. Sempre achei estranho ela trabalhar naquele salão o dia inteiro. Tinha minhas dúvidas sobre a relação dela e da sua chefa, a Raimunda. As duas viviam de mãos dadas, sorrisinhos. Não que eu fosse amá-la menos se ela fosse lésbica. Mas seria estranho. Mas não tenho preconceito. Hoje em dia ter preconceito contra gays é a coisa mais brega que existe. Ainda mais depois do último Big Brother Brasil. Ainda mais depois dele.

Como eles devem estar agora?

Agora estou aqui morto. E como já disse decepcionado em relação ao momento mais misterioso da vida. Nada igual ao “Ghost”, nada parecido com “Amor além da vida” e muito menos com os demais filmes de fantasmas que assisti. A minha vida após a morte até agora ta mais para uma vida igual. Essa fila parece fila de banco. Reparem. Todos com caras tristes. Todas sabendo que devem algo e que serão cobradas. Chega ser engraçado. Eu queria ser uma alma penada, vagar pela terra. Assim eu poderia ver musas do cinema tomando banho ou até mesmo fazendo sexo. Duvido que alguns espíritos não façam isso.

E onde deve estar o ladrão agora? Me roubou cem Reais e meu MP4. Perdi minha vida por coisas fúteis. E vai demorar até que achem meu corpo. Enquanto isso, ainda estou na fila e acho que aqui ficarei por muito mais tempo. E se a morte for só isso, a vocês que me lêem só digo que aproveitem a vida. Ela é muito mais legal. Muito mais movimentada. Muito mais emocionante. Lá você ama de verdade, tem sentimentos e cada dia você vive sem a certeza de como ele será. E olha que minha curta vida não foi lá essas coisas.

Fale o que tiver que falar, faça o que tiver que fazer.

Ainda aguardo meu tal julgamento. Espero que os santos sejam caras legais e que Jesus tenha mesmo senso de humor como todos dizem. Viver é um saco, mas morrer dói demais...

Fael Velloso
Enviado por Fael Velloso em 23/02/2010
Código do texto: T2102315
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2010. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.