O Espírito Natalino do Nobre Deputado
"Vai chegando o Natal e começa a me baixar esse sentimento cristão de piedade e generosidade. Vai me dando uma vontade irresistível de ajudar ao próximo, de dividir um pouco do pouco que possuo com os mais necessitados...
E como no próximo ano teremos eleições -- e sendo eu o homem público que sou --, a minha compaixão e benevolência ficam ainda mais acentuadas.
Não que eu seja rico, que tenha dinheiro de sobra, longe disso!
Vivo modestamente com as ajudas de custo que o Congresso generosamente provê. Moro numa mansãozinha na Península, coisa pouca, já que os meus outros imóveis no Lago Sul, no Park Way, no Plano Piloto, em Ipanema, no Leblon, na Barra, no Morumbi, em Lisboa e em Miami estão todos alugados ou emprestados pra alguns dos meus assessores e pra uns empresários amigos. E eu não seria cruel de deixar todos eles sem um teto que os abrigue, não é mesmo?
E não pense que faço isso só porque eles me auxiliam um bocadinho em certos negócios financiados com verbas públicas que tomamos emprestadas a fundo perdido. E já que fazemos tanto esforço no sentido de desviar temporariamente e, ainda por cima, fazer render estas ditas verbas, nada mais justo que dividamos os pequenos lucros gerados na transação. O problema é que sempre acabamos fazendo uma certa confusão entre lucros e verbas e, sem saber o que é o que, terminamos por embolsar a diferença.
Não devo mexer nas minhas contas da Suíça, senão perco os rendimentos. As das Ilhas Cayman também devem ficar como estão, não é uma boa ocasião pra fazer retiradas. As de Nova York e Miami têm tão pouca coisa, não chegam nem aos oito dígitos, pra quê mexer com elas? Vou tomar emprestadas aquelas verbas pra Educação e Saúde. No ano que vem, perto das eleições, devolvo uma pequena parte desse empréstimo, alardeando que é a título de dotação extraordinária e ainda faço uma boa figura com o meu eleitorado.
E com esse dinheirinho levantado irei ajudar ao próximo, àqueles que necessitam.
Começarei pela jararaca da minha sogra, que não merece nem um alfinete, mas é viúva do Senador Honestino Hipocritus, vulgo Coronel Malvadeza, aquele que me iniciou nas artes e nos meandros da vida pública, depois que engravidei inadvertida e desinteressadamente aquele tribufu da filha dele. Darei pra jararaca uma das passagens aéreas a que tenho direito, pra ela ir passar uma temporada naquela porcaria de cidade onde a gente nasceu, lá no fiofó do mundo.
Pro vagabundo do meu cunhado, que já mama à vontade como meu aspone -- graças a Deus sem jamais botar os pés no meu gabinete --, mas que anda meio pobrezinho por não saber administrar o que ganha -- tem só uns dois ou três milhões na poupança, um Honda City e uma pequena mansão no Park Way --, vou dar a BMW que ganhei daquele empresário da construção civil, pra quem eu cedi a vitória na licitação pra construção daquela ponte que leva de nada pra porra nenhuma lá na minha cidade.
Pro inútil do meu filho, que nunca tem dinheiro porque gasta tudo com farras, drogas e periguetes, vou dar metade da percentagem que levei na liberação da verba pra ONG da minha prima. Coisa pouca, não chega nem a milhão. A percentagem, quero dizer. Aliás, não sei a quem esse menino puxou... à minha família é que não foi, a não ser aquele idiota do meu irmão cachaceiro e sifilítico, que não sei como consegue ainda permanecer como juiz naquele fim de mundo onde a gente nasceu.
Pra minha mulher vou dar o colar que tinha comprado pra dar pra gostosa da minha secretária particular -- tão compassiva e dada, a moça, que eu até descolei um cargo pra ela no gabinete do meu compadre, o nobre Deputado Federal Rouberto Ladino, vulgo Doutor Analfa, embora ela trabalhe exclusivamente no meu próprio gabinete, ganhando salário de assessor sênior. É que ela achou o colar muito brega, até me advertiu que combinava mais com a baranga da minha mulher. Então resolvi dar pra ela uma casinha de cinco quartos no Lago Sul. Aquela que ganhei do panaca do Ministro no último jogo de pôquer que rolou na casa do Desembargador.
E, finalmente, pros meus empregados vou dar uns panetones -- aqueles que fui obrigado a comprar quando me pegaram com a boca na botija, recebendo uns trocados daquele safado do cupincha do meu antecessor. E que eu fui obrigado a dizer que era a verba pro panetone do povo desvalido, meus fiéis eleitores. Os quais, aliás, de mim só vão mesmo é ganhar mais promessa durante a campanha, porque metade deles já tem aquela mamata da bolsa-esmola que o espertinho do molusco distribui em troca de voto. E que eu capitalizo, dando o apoio político que ele precisa.
Pronto, já é o bastante. Generosidade tem limite. E o meu espírito natalino já atingiu a cota.
Feliz Natal pra vocês, cambada! E não se esqueçam de votar em mim de novo no ano que vem, hein?"
Assinado:
Deputado Federal H. Tuno Cord Rupto, o Mão Leve.
Obs.: Qualquer semelhança com personagens reais não terá sido mera coincidência. Afinal, a realidade nos inspira a toda hora, desde o reinado até os dias de hoje.