Uma estranha teoria sobre a solidão
Após anos de observação confirmei uma hipótese sobre um fenômeno intrigante. A solidão, ou melhor, a sua cura, senão definitiva, ao menos momentânea. Percebe-se que no mundo pós-moderno o assunto preocupa autoridades de vários países, principalmente pelos seus reflexos na área da saúde afetando a qualidade de vida de milhões de pessoas em todo o mundo.
Vamos aos fatos. Segundo o dicionário Houaiss, em sua versão eletrônica, o termo solidão significa: o “estado de quem se acha ou se sente desacompanhado ou só; isolamento”. Partindo de sua definição percebemos que a solidão em si não é boa ou má, mas sim o sentimento em relação a ela.
Sempre questionei a eficácia dos métodos sugeridos para curar a solidão involuntária posto que exigem um compromisso interno do solitário que nem sempre está preparado para lançar-se em busca de companhia. Com o tempo passei a investigar o assunto com mais atenção e, quase que por acaso, acho que por um toque mágico de inspiração testemunhei o fenômeno.
Há muitos anos atrás, antes de concluir meus estudos universitários, trabalhei na biblioteca da universidade em que estudava, como auxiliar. Dentre as tarefas mais complexas desenvolvidas por mim estava a árdua missão de guardar livros. Todos os dias eu desenvolvia minha missão de guardar as incontáveis pilhas de livros retirados das prateleiras pelos alunos no dia anterior.
Sem dúvida era uma atividade solitária. Devido ao espaço imenso do interior da biblioteca ela dificilmente enchia. As prateleiras circundavam um conjunto de mesas ao centro com amplos espaços.
Lá estava eu em meu um labor solitário. Concentrado. Quando então fiz minha primeira observação relevante para o desenvolvimento de minha teoria. Senti um leve desconforto abdominal, prenunciando uma reação fisiológica, tratava-se obviamente do fenômeno vulgarmente conhecido como flato.
Como não havia ninguém no recinto há várias horas, senti-me encorajado a produzi-lo sem qualquer tipo de constrangimento. Constatei em instantes que seria impossível fazer aquilo em público sem provocar um rebuliço ou, no mínimo, um enorme constrangimento para mim caso a autoria fosse identificada.
Observei então que a solidão até então implacável dissolveu-se em instantes, antes mesmo que o cheiro fétido e nauseabundo se dissipasse. De súbito, como que em um passe de mágica, surgiu a diretora da biblioteca com uma relação enorme de tarefas para me passar. Fiquei amarelo como uma manga. Indefeso. Meu coração disparou. Já não me sentia mais solitário. Intuí nesse instante a existência de uma relação cósmica entre os fatos, mas na época ainda não havia dados suficientes para sustentar uma teoria. O assunto foi tratado por mim como mera hipótese. É obvio que a companhia inusitada e instantânea percebeu de plano que havia “algo no ar” e acelerou o quanto pode nosso inefável encontro.
Com o correr dos anos comecei a observar mais atentamente o fenômeno e ao que me consta a teoria vem se confirmando com precisão cirúrgica.
O dado conclusivo ocorreu recentemente, uns 18 anos depois do primeiro registro, quando no emprego onde estou atualmente resolvi adiantar uns trabalhos numa sala reservada para estudos. Pela manhã o funcionamento da instituição é bem limitado e o trânsito de pessoas naquela sala é quase nulo. Eis que de repente a reação abdominal inequívoca se pronunciou.
Ante a solidão que se abatia sobre mim naquele momento não vi mal algum em expelir o ligeiro elemento gasoso incômodo. Confesso que o ar ficou rarefeito. Eu mesmo já estava decidindo a ir dar uma volta até a tempestade passar. Instantaneamente a porta da sala se abre e entra uma professora me pedindo alguma coisa. Como um jaguar pulei em direção à porta para interceptá-la antes que ela pudesse perceber o que estava acontecendo. Felizmente consegui dissuadi-la de permanecer ali, aliás não descobri se foi minha estratégia ou ela, infelizmente, sentiu o cheiro sinistro.
Pois é, essa é a minha teoria e consiste no seguinte postulado:
“O peido influencia diretamente nos vetores responsáveis pela solidão. Ao peidar a pessoa cria uma reação, que ainda será objeto de mais estudos, que inevitavelmente leva alguém a se aproximar dela eliminando ao menos momentaneamente a sensação de vazio provocada pela solidão”
Obs. A experiência foi desenvolvida sob os mais rigorosos critérios de cientificidade e não deve ser feita sem um dimensionamento calculado dos riscos.