Diário de uma bactéria
Hoje de manhã, depois de ter me reproduzido devidamente, eu tava numa boa nadando num lugar quentinho e escuro, junto com os meus irmãos protozoários e meus amigos vírus, quando de repente a piscina começou a escoar. E lá fomos nós através de um túnel estreito até nos esborracharmos numa goiaba caída no chão. Apesar de estar meio zonza, ainda pude ver um baita rabo rosado passando bem pertinho da gente. A água amarela em que estávamos nos esbaldando logo foi absorvida pela fruta. Foi bem legal, porque o exercício nos deixou famintos e aí a gente pôde fazer um lanchinho leve e saudável ao lado dos nossos primos grandões, os bichos-de-goiaba, só tomando cuidado pra não virarmos lanche deles também.
Mas o nosso sossego não durou muito, porque logo fui parar, não sei como, dentro de uma enorme caverna vermelha, mole, molhada e que não parava de se mexer. Tive muita sorte de não ser esmagada pelas imensas estalagtites e estalagmites de um branco esmaltado encardido, que subiam e desciam triturando o pedaço de goiaba. Depois, o chão dessa caverna corcoveou loucamente e lá fomos nós, bactérias e vírus e pedaços de goiaba, descendo por outro túnel até mergulhar numa outra piscina quentinha e escura. Cara, foi uma experiência radical! Em vez da aguazinha amarela, lá dentro tava cheio de ácido! Então eu fui nadando até um buraco que tinha no fundo e, quando ele abriu, mergulhei de cabeça numa outra caverna que tinha as paredes todas enrugadas.
Caraca, como tava sujo lá dentro! Tinha toda espécie de porcaria ali. Eu me agarrei num carocinho de goiaba meio dissolvido que foi sendo empurrado por esse túnel abaixo. Depois de dar um montão de voltas -- e a cada volta encontrar mais e mais coisas nojentas pelo caminho, mas nem por isso deixei de me reproduzir mais uma vez, deixando a minha grande prole grudada nas paredes daquele túnel, como convém às bactérias bebês -- acabei saindo de lá e me vi, não sei como, num pedaço de papel branco e áspero. Quase fui jogada, junto com ele, numa cesta cheia de papéis amassados e sujos feito aquele! Mas terminei sendo capturada pelas ranhuras da pele de um dedo que segurava o papel e até achei legal ficar ali por um tempo.
Esse dedo, depois, segurou muitas outras coisas -- documentos, envelopes, canetas, carimbos, copinhos de plástico com café -- e, apesar de alguns dos meus irmãos e amigos terem se mudado pra algumas dessas coisas, eu não quis ficar em nenhuma delas. Tava esperando a hora do lanche do dono do dedo, pra me mudar pro que ele tava comendo e poder ir de novo brincar numa piscina bacana. Só que, quando ele foi pagar o lanche, eu fui transferida na marra pra uma nota de dinheiro meio amassada e muito suja, onde encontrei vários outros de meus irmãos e amigos. Eles sugeriram que a gente pulasse pro dedo do vendedor de lanches, que pegou a nota em que a gente tava grudada, e foi o que a gente fez. Não sem antes aproveitar pra me reproduzir de novo, deixando lá os meus descendentes.
Em seguida, quando ele pegou um pão de queijo pra servir pra alguém, a gente se agarrou naquela casquinha mole e quentinha. E depois ficou fazendo aposta, pra ver quem iria ficar preso nas estalagtites e estalagmites da caverna vermelha que já tava se abrindo pra morder o pedaço do pãozinho em que a gente tava se agarrando. Eu consegui me salvar e fui de novo engolida junto com os pedacinhos triturados. Lá fui eu de novo nadar naquela piscina de ácido e, com alguma sorte, dessa vez iria parar naquela outra piscina de água amarela ao invés daquele túnel comprido e cheio de porcaria. Ah, e aproveitei pra me reproduzir outra vez, claro, deixando por lá meus filhotes pra se nutrirem bem e crescerem fortes e saudáveis.
E amanhã a aventura continua. Porque vida de bactéria pode ser dura e difícil, mas é cheia de diversão!
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Este texto me foi inspirado ao testemunhar a cena do vendedor ambulante de sucos e salgadinhos, que manuseia dinheiro e comida com a mesma mão.