"COM QUE ROUPA QUE EU VOU"?

Quando meu avô materno imigrou da Itália, se posicionou numa pequena cidade do interior de São Paulo na profissão de alfaiate, diferentemente do meu avô paterno que por aqui montou um empório de secos e molhados, bem na divisa da Moóca com o Brás.

Todos conhecemos a difícil história dos imigrantes italianos.

Não foi nada fácil depois de tentarem fugir da situação de lá, tocarem suas vidas na também dificil situação de cá.

Eu não cheguei a conhecê-los, só sei que o materno morreu precocemente aos cinquenta e quatro anos de idade, vítima de problema cardiovascular súbito, depois duma farta macarronada feita pela minha avó e que foi consumida tarde da noite.

Minha avó o amava muito, deixo bem claro, antes que alguém pense o contrário.

Isso é o que conta minha mãe, como também sempre me contou das peripécias da profissão de alfaiate que lhe consumia quase todo o tempo, e poucas horas de folga lhe sobravam para exercer seu hobby, o de ser árbitro de futebol.

Sem megalomania, meu avó era o melhor, embora o menor alfaiate da cidade.

Um homem pequeno que usava chapéu para "quase" se equiparar à altura longilínea da minha avó.

Chegou a ter discípulos vários, mas ninguém se igualava ao seu tino artístico.

Conta a minha mãe que a confecção de seus overcoats de lã inglesa era perfeita, bem como seus ternos de linho de caimento impecável, aonde não se distinguia a costura do avesso, todos muito disputados pelos políticos, prefeitos ,delegados, médico, padre e demais pessoas que na remota época eram tidas como celebridades da pequena cidade.

Foi assim que até eu aprendi a avaliar a perfeição dum terno " a la William Bonner", pelo impecável caimento dos ombros...é o que sempre observo primeiramente.

E certo dia lhe apareceu uma encomenda diferente: o freguês estava a beira da morte prestes a receber e extrema unção.

Naquela época se tinha uma roupa certa para cada ocasião: para a Páscoa, para o Natal, para a missa, para o batizado, para os domingos e para o defunto.

Não era essa facilidade toda de moda que temos hoje por aqui...

E era meu avó o profissional mais importante das tais festividades.

Ficava orgulhoso em apontar para a minha avó, nas celebrações diversas, a obra prima que havia saído das suas mãos.

E o defunto já havia sido encomendado aos céus, porém a encomenda maior era para o meu avô.

Ninguém morria deselegantemente, assim... sem passar pelo crivo do bom gosto do meu avô."Defunto que se preza tem que ser despachado com bom traje, aos moldes ingleses", dizia ele com toda a propriedade.

E conta minha mãe que certo dia as medidas do futuro defunto lhe chegaram meio confusas, e bem às pressas, quase às vésperas do seu despacho.

Ninguém podia esperar muito, porque o caso era grave e o defunto merecia todo o justo e rápido descanso.Não seria o meu avô a incomodá-lo com a sua mania de perfeição.

Que nada! Como não concordou com as medidas, ele mesmo foi até o leito de morte, medir o figurante bem direitinho como mandava o seu figurino. Afinal,o seu ofício de alfaiate estaria em jogo, bem a vista de todos.E defunto bem vestido, na certa era a garantia do seu sucesso, a melhor propaganda que se poderia ter num evento!.

Pronto o terno... foi só esperar pela palavra do médico, pois o padre já fizera a sua parte..

Porém, o quase defunto empacou...e desistiu de ir no meio do caminho.

Como num milagre. Começou misteriosamente a se recuperar, ficando forte como um touro! E foi assim que meu avô ficou mais famoso que santo milagreiro! Se havia risco de bater as botas era melhor tirar as medidas com ele!

Conta minha mãe que a história correu os quatro cantos da cidade, virou até lenda, posto que o terno até hoje jamais foi vestido por defunto algum.

Eu particularmente acho que um terno daqueles não combina em nada com pijama de madeira.

Deve ser por isso que ficou guardado no tempo a sempre esperar pelo próximo freguês...que hoje em dia sequer ousa a se perguntar "mas...com que roupa que eu vou?"