Adrenalina

Até que ponto conseguimos suportar a rotina?Qual é o limite para nossos neurônios,tendões e músculos?Será que todos nós estamos fadados a repetir por anos a fio horários e compromissos em busca da sobrevivência e da estabilidade?

Julia não sabia as respostas para nenhuma das questões acima,mas desenvolvera um antídoto para neutralizar,ao menos de vez em quando,o veneno que a previsibilidade das coisas fazia acumular em seu corpo.

A técnica era simplesmente burlar as regras.Podia ser qualquer regra:não pisar na grama,tirar mais de duas folhas de papel da toalheira automática do banheiro do shopping(o planeta que se danasse!),trocar a etiqueta do preço do DVD na loja de departamentos por outra de um valor menor(esta exigia perícia),entrar de penetra na festa do amigo do amigo do amigo do conhecido,não pagar o estacionamento rotativo,falsificar carteirinha de estudante para pagar meia entrada em shows,teatros e cinemas e,pasmem,surrupiar,aqui e ali, balas e canetas no supermercado.

Ela não sabia explicar a razão,mas sentia-se revigorada após os pequenos delitos,pronta para enfrentar seu trabalho,suas contas,e um namoro que já durava dez anos sem casamento à vista.

Naquele fim de semana a moça acrescentaria mais uma pequena falcatrua a sua lista de infrações.Assistiria d-e g-r-a-ç-a a pré-estréia de um filme.

O esquema era simples.Ela e seu namorado comprariam ingressos para outro filme,cuja sessão terminaria pouco antes da pré-estreia;ao fim da película,iriam direto para o banheiro e lá ficariam escondidos até que as salas fossem reabertas para as sessões seguintes.Quando a novas levas de espectadores passassem pela bilheteria eles sairiam dos sanitários e,incógnitos pela multidão,calmamente adentrariam na sala da pré-estréia.

Seria duplamente prazeiroso para julia:estaria quebrando as regras e ao mesmo tempo,na sua opinião,fazendo justiça.É que ela achava um absurdo a pessoa não poder assistir várias sessões de um filme no mesmo dia,como cansara de fazer na sua adolescência.Hoje em dia,quando a projeção acaba,vem um exército de funcionários para limpar a sala.E é aqui que entramos a história;no exato momento em que Julia e seu "namorido" Felipe saem dos banheiros e se preparam para praticar o golpe.Nervoso,Felipe segura a mão de Julia e diz:

__Nunca pensei que um dia faria isso.Eu tive de ficar sentado no vaso com as pernas para cima para que não vissem meus pés por baixo da porta.Foi constrangedor.

__Não dramatiza,tá?Eu fiz a mesma coisa e estou aqui,lépida e fagueira__minimizou Julia

__Se pegarem a gente?Já imaginou a vergonha?

__Que vergonha?Se nos pegarem é só dizer que nos confundimos de horário ou que erramos de sala.

__Isso é "desculpa de peidorreiro"Julia

__ Felipe__Julia arqueou as sombrancelhas por alguns segundos e depois concluiu__Você é um bocó!Toma um pouco de pipoca vai.

Talvez concordando com a opinião de Julia a seu respeito,Felipe enfiou uma das mãos no saquinho de pipoca da namorada e mastigou quieto a iguaria salgada .

O cinema ocupava dois andares dentro do shopping,e os ingressos eram requisitados dos espectadores no andar de baixo,de tal forma que,uma vez no segundo andar e transitando pelo extenso corredor onde enfileiravam-se,lado a lado, oito salas de projeção,a pessoa necessariamente já deveria ter pago seu tíquete.Além disso,os assentos não eram numerados,o que facilitava o golpe.Mesmo assim,Felipe suou frio ao passar por um funcionário uniformizado na entrada da sala;não estava acostumado a burlar a lei.Sentaram bem na frente,onde Julia gostava,apesar dos protestos do "namorido",que preferia os lugares mais atrás.Excitada,a infratora comemorou:

__Felipe!Nós estamos numa pré-estréia!E de graça!

__Fala baixo!Alguém pode ouvir.

__Olha a neura Felipe..Mas eu pensei que teria tapete vermelho,champagne..

__Tapete vermelho e champagne por quê?

__Ora,eu nunca tinha vindo numa pré-estréia antes.Achei que teria algo de especial!O nome não é chique?Pré-estreia!Uau!

Felipe não sabia ao certo por que motivo os cinemas faziam aquela sessão única de um determinado filme uma ou duas semanas antes dele entrar em grande circuito.Calculava que seria um meio de se avaliar o apelo da obra e seu potencial de arrecadação.Certamente não seria para usar um tapete vermelho e distribuir champagne como imaginava,ou melhor,"viajava",Julia.

Pouco antes das luzes serem apagadas,um pequeno grupo composto de seis homens vestidos com o uniforme da rede de cinemas entrou na sala.Felipe apertou o braço de julia e cochichou ao seu ouvido:

__Fomos descobertos!

__Eu vou te levar à um psicólogo;não,a um psiquiatra!__praguejou Julia,enquanto afastava o braço do namorado.

Um dos funcionários,através de um microfone sem fio,dirigiu-se à platéia.O Recado foi o seguinte:"A rede de cinemas Izis tem orgulho de comunicar a promoção relâmpago comemorativa de seus vinte anos de existência!

__Está vendo?Não fomos descobertos coisa nenhuma!__exultou Julia.

O homem continuou explicando a promoção:"Um feixe de laser emitido por um dispositivo eletrônico situado bem acima da tela de exibição incidirá alternadamente sobre todos os assentos e,a certa altura e de forma totalmente aleatória,irá parar sobre apenas um.A pessoa que estiver sentada nesta cadeira será o feliz ganhador/ganhadora de um lindo gol zero quilômetro totalmente equipado.A única exigência para receber o prêmio será estar com o ingresso da sessão nas mãos!

A sala ferveu.Todos(menos,é claro,o casal infrator),apressaram-se em pegar o canhoto dos seus ingressos das carteiras e bolsas,esperando serem agraciados pela sorte.Fazendo pouco caso,Julia comentou:

__Felipe,isso é tudo armação.Com certeza vão sortear alguém do "esquema" deles.Eu é que não caio nessa.

Felipe não respondeu.No seu íntimo,concordava com a namorada.Ganhar um gol zero quilômetro assim...Era muita moleza,pensou.

Nesse instante,uma sirene tocou e um feixe de luz vermelha saído do alto da tela começou a varrer a sala,cadeira por cadeira,repetidas vezes.Entediada com tudo aquilo,Julia sussurrou:

__Anda logo droga.Eu quero ver o filme.

A sirene tocou novamente e Julia sentiu um desconforto nos olhos.Estava enxergando tudo vermelho.Olhou para Felipe e notou que o namorado estava com os olhos arregalados e a boca aberta.Ia perguntar-lhe o motivo daquela expressão quando se deu conta que todos na sala olhavam para ela.Uma música de festa saiu dos alto- falantes e uma chuva de papel picado prateado caiu do teto.Foi aí que Julia percebeu a terrível verdade:o feixe estava parado sobre a sua cadeira.Ela havia sido sorteada.O funcionário com o microfone a convocou para ir receber o prêmio.Desnorteada, perguntou ao namorado:

__E agora?O que é que eu faço?

__Vai lá ora!__respondeu Felipe,colocando uma das mãos na cabeça.

__Mas eu não tenho o ingresso!Eu não tenho o ingresso!

__Inventa uma história qualquer!É um carro zero!__o moço gesticulava e suava muito.

Em transe,Julia levantou-se e foi até onde estavam o grupo de funcionários.Um deles estava com a chave do carro,do seu carro,nas mãos,e a agitava sem parar.Antes de entregá-la à vencedora,porém,veio a exigência fatal:

__Agora a moça me dá o seu ingresso e eu te dou a chave deste lindo gol zero quilômetro.

Julia tentou falar,dar uma explicação qualquer para não estar com o ingresso,mas,ao invés de palavras,tudo o que conseguiu emitir foram grunidos incompreensíveis.Logo depois veio a tontura e o desmaio.Antes de desfalecer completamente,vislumbrou Felipe correndo ao seu encontro para amparar-lhe ...

Acordou algum tempo depois num quarto deitada numa cama.O lugar era para descanso dos funcionários do shopping,mas serviu para que ela recuperasse os sentidos.Viu Felipe sentado numa cadeira perto da cama.Ele tinha o semblante preocupado.Julia não estava nem totalmente desperta e foi logo perguntando:

__Ganhei o carro?

O namorado sacudiu a cabeça e respondeu:

__Não teve jeito Julia.Sem ingresso,sem prêmio.Eu ainda tentei explicar que nós havíamos jogado os tíquetes fora,mas não deu.Eles fizeram um novo sorteio e uma senhora de uns setenta anos,que estava acompanhando a filha de cinquenta,ganhou o carro.

__Isso é um acinte!__esbravejou Julia__Ela provavelmente nem dirige mais!

__ E não dirige mesmo!__concordou Felipe__Disse que vai vender o carro e doar o dinheiro para um asilo de gatos e cachorros que ela ajuda!

__Eu não acredito!Meu carro vai comprar ração e leite para cachorros e gatos de rua!

__Exatamente.__concordou o "namorido".

Os dois ficaram em silêncio por um tempo até que Felipe,sem dizer nada,tirou do bolso uma pequena caixa aveludada e a entregou à Julia.Ao abri-la,a moça vislumbrou um anel prateado com um brilhante solitário.O pedido foi feito(e aceito) ali mesmo.Ver Julia desmaiada mostrou ao moço que as coisas boas precisam ser conservadas,e deu-lhe coragem para finalmente tirar do bolso a jóia que já havia comprado há algum tempo.

Julia deixou de lado sua técnica infalível contra a rotina,e o máximo de rebeldia que comete hoje em dia é não ir as reuniões de condomínio do prédio onde mora com Felipe.O síndico é um mala sem alça.

arqueiro
Enviado por arqueiro em 04/10/2009
Código do texto: T1848328
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2009. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.