Poética amnésia

Eu tenho um amigo que, como todo poeta, é a distração em pessoa. Vive no mundo da lua, de vênus, marte, saturno, plutão... e muito raramente aterrissa no nosso mundo cão.

Nos tempos da UnB era ainda mais grave o seu caso. Estava sempre perdendo provas e exames, perdia até mesmo festas e outras farrinhas, por puro avoamento.

Um dia, depois de ter sobrevivido a muitas aulas e tarefas seguidas, foi com grande alívio e louco pra voltar pra casa que se dirigiu ao ponto de ônibus. E, enquanto caminhava até lá, ia distraidamente rodando um chaveirinho no dedo e pensando:

-- Eu tô me esquecendo de alguma coisa muito importante, mas não sei o que possa ser!...

O ônibus chegou, ele subiu, pagou, sentou-se perto da janela, ficou olhando a cidade que passava lá fora, mas sem deixar um minuto sequer de rodar o chaveirinho e de pensar que estava se esquecendo de uma coisa importantíssima, sabe-se lá o quê! E só depois de passados muitos quilômetros e minutos é que percebeu que estava indo pra outro destino que não era o seu.

Então desceu do ônibus errado, esperou pacientemente o que o levaria de volta à UnB -- que, é claro, quase perdeu --, onde pegaria o coletivo certo -- obviamente, também quase perdido --, e fez tudo isso sem parar de girar o tal chaveirinho, nem de repetir o mantra que dizia que ele estava se esquecendo de algo importante pra caramba, mas que não tinha jeito de saber o que era...

Depois desceu do ônibus certo na quadra errada -- como de praxe --, foi caminhando de volta, quase que ultrapassa o seu bloco, e o tempo todo o chaveirinho rodando no dedo e o refrão feito disco arranhado dentro da cabeça -- o que será que eu me esqueci dessa vez? --, até que finalmente chegou em frente à porta do apartamento onde morava com a família, seu lar doce lar.

Foi nesse instante que, ao empunhar o dito chaveirinho e procurar pela chave certa, a ficha caiu suave como uma montanha de chumbo e fez-se a luz.

Ele estava com as chaves do fusca que dividia em sistema de rodízio com os irmãos. E o fusca estava estacionado lá na UnB...

:)

N.A. - "bloco" é como se chamam os prédios residenciais e comerciais em Brasília.

Maria Iaci
Enviado por Maria Iaci em 01/10/2009
Reeditado em 01/10/2009
Código do texto: T1842341
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