O importante é manter a dignidade...
Já reparou que o seu nariz só coça quando você tá impossibilitado de usar as mãos e os braços? Ou qualquer outra parte do corpo?
Pois eu tava pela zilionésima vez carregando o gabinete trambolhudo do PC -- não o Farias, mas o micro -- pela rua onde fica o hospital dos computadores enfermos, quando de repente fui acometida pela pior coceira no nariz que já rolou!
Torci o dito cujo pra todos os lados, trinquei os dentes, apertei bem os olhos, juntei tanto as sobrancelhas que a da direita quase que passa pra esquerda e vice-versa, e nada.
Tentei desesperadamente ignorar a inoportuna comichão narigal, mas ela só aumentava!
Não podia nem coçar com o braço, que o trambolho é pesado pra burro e os meus braços são magrinhos. Usar o joelho, nem pensar! A trapizonga tava no meio do caminho entre ele e o nariz coçante.
Num último recurso, resolvi coçar o apêndice nasal na quina do próprio gabinete do PC.
Que alívio! A coceira passou!
Mas a porcaria do gabinete tava cheio de poeiras milenares lá por detrás da abertura da ventoinha... e toda a progressista e crescente colônia de ácaros que habitava as suas entranhas resolveu emigrar de uma vez pras minhas indefesas narinas. O resultado foi um terrivelmente violento acesso de espirros, quase que deixo cair a máquina, de tanta tremedeira chacoalhante.
E aí aconteceu o horror dos horrores -- esse nariz traidor, infiel, egoísta que só ele, decidiu que iria respingar incontrolavelmente estimulado por tanto espirro. E quando ele resolve fazer isso, faz no capricho, parece torneira frouxa, não há fungada inspirada que traga aquele dilúvio nasal de volta pra dentro!
Já meio cega, tonta e atarantada, falei pra um sujeito que ia passando pela calçada:
-- Zeguda aí bra bin, bur vavor! -- enquanto tentava esticar os braços trêmulos pra passar pra ele a incômoda carga.
-- O que?!?
-- Ziguda o gabidede bra bin, bur vavôôô!
-- Ai dônti ispíqui ínglichi.
-- Dããão, dô vadando borduguêêês! O Be Zêêê, ziguda bra biiiin!
-- Ai dônti ispíqui arabíchi também.
-- Be gue bê! Agoda dadou-ze!
E empurrei o trambolhão pros braços do caboclo, que segurou o negócio por puro reflexo, e em seguida vasculhei freneticamente meus bolsos com 30 braços e 50 mãos, à procura do lenço redentor. Que, claro, eu não tinha levado.
Aí resolvi entregar tudo a Deus! Dei uma fungada inspirada tão forte que quase aspira a rua toda, com carros e pedestres e papeisinhos soltos e o sujeito estupefato com meu gabinete nos braços junto. E enquanto fazia isso, esfreguei as costas da mão umas trocentas vezes no nariz traidor, me lixando pro que pudessem pensar, depois enxuguei aquela umidadezinha suspeita na lateral do jeans, peguei o gabinete de volta, resmungando um agradecimento apressado pro providencial monoglota bestificado e segui meu caminho altiva, reunindo todos os caquinhos de dignidade que pude.
E os que não pude também.