Na repartição

-- Dona Clotilde, cadê o relatório?!

-- Só se for agora, chefia! Num minutinho!

O "chefia" sai batendo a porta, esbaforido, chiando e soltando mais fumaça do que trem antigo. E a Dona Clotilde imediatamente volta à postura e expressão relaxadas de costume. Pachorrentamente, tira uma lixa de unhas da bolsa e começa a manicurar seus impecáveis apêndices digitais de quase 5 centímetros, os quais lhe servem de álibi perfeito pra justificar o ritmo de lesma paralítica com febre reumática com que digita seus raros e parcos relatórios. Abre parêntese. Quando se trata de mandar e responder e-mails pessoais, daqueles cheios de pps e de correntes e de alertas e dicas de saúde e receitas pra celíacos e fotos de crianças desaparecidas e aquelas piadas que, de tão batidas, praticamente já circulam pela rede por moto próprio, o ritmo e a quantidade sofrem um ligeiro incremento. Fecha parêntese.

A colega da mesa ao lado, com jeito conspiratório, pergunta baixinho:

-- Ô, Clotilde, você não vai fazer o relatório agora? Olha que o Chefia tá soltando lava incandescente pelos poros...

-- Ah, não esquenta, não!... Esse cara vai ter um piripaque qualquer hora, se não aprender a relaxar... Não sei pra que tanto estresse! No fim, vai tudo pro arquivo, mesmo.

Depois do trato às unhas, do quarto cafezinho com biscoito, do sexto copo de suco de maracujá, de oito saidinhas pra fofocar com as colegas lá do outro departamento e de tirar xerox de uma receita de bolo que saiu na revista que a moça da copa emprestou, finalmente Dona Clotilde se acomoda devidamente em sua cadeira, ressuscita o PC que tava tirando um cochilo, ajeita o teclado, o mouse pad, e assume a atitude alerta e concentrada de quem vai principiar uma tarefa importante.

-- Eita, Clotilde, resolveu finalmente desencavar o relatório, é? -- pergunta a conspiradora da mesa ao lado.

-- Que relatório?... Ah, aquele... Nada, menina! -- inclina-se mais pra perto da colega e cochicha -- Sabe a Dulcinéia, aquela que senta na mesa do cantinho lááá atrás? Eu pedi pra ela fazer e ela topou! Aliás, você já reparou como aquela criatura tra-ba-lha o dia inteirinho, sem parar? Eu fico até cansada só de olhar!... Credo, no mínimo, deve ser mal amada, coitadinha.

Com um suspiro profundo e cara compungida, volta a se concentrar na tela do PC. Faltava só um bocadinho pra terminar a partida de spider. E distraidamente ficou a pensar se, em seguida, jogaria solitaire ou freecell. Depois sorriu com o gozo antecipado da idéia da greve geral marcada pra semana seguinte -- pauta da reivindicação: aumento dos salários e benefícios --, uma oportunidade excelente pra ir passar uns dias em Caldas Novas ou Piri.

-- É isso que esgota uma pessoa, viu?... O tempo todo a gente tem que escolher e tomar decisões, sem ajuda de ninguém... Ufa, tô e-xaus-ta!... Já deu seis horas, meu bem?