O Flatomóvel
Este conto foi escrito pro meu sobrinho e afilhado Bernardo, depois de uma conversa muito séria em que ele me contou sobre as pesquisas com gás de hidrogênio para motores de alta performance, o que imediatamente me inspirou.
O FLATOMÓVEL
Ele era um mecânico habilidoso e criativo.
Mas também era um cara daqueles que comem ovo cozido, torresminho e croquete de boteco, pastel de carne, batata doce com melado, muito feijão com lingüiça, acarajé com pimenta, além de beber litros de refrigerante, de caldo de cana, de cerveja e de café. O resultado desta dieta tão light era que ele sofria de flatulência, que é o nome chique para peidorreira desenfreada.
Num belo dia em que levou a namorada para passear num dos carrões que tinham sido deixados na oficina para consertar – ele consertava e dizia que, pra testar, tinha que passear com a namorada –, aconteceu d'ele olhar pro mostrador do combustível e ver que estava bem baixo e, ao mesmo tempo que constatava isso, soltou um sonoro e muito odoro traque, daqueles de estremecer o ambiente e derreter materiais sintéticos e, enquanto sua sufocada namorada abria o vidro entre indignada e desesperada, bateu a inspiração no mecânico – por que não fazer um carro movido a peido? – E, muito entusiasmado, fez esta mesma pergunta para a sua garota, que, entre grandes sorvos de ar poluído pelo trânsito (que a ela parecia o mais puro ar naquele instante) com a cabeça toda pra fora da janela do carro, prontamente respondeu:
– Bom, combustível pra você nunca vai faltar, não é mesmo?
* * *
Nosso flatulento amigo não demorou a por mãos à obra e fabricou um bom carrinho movido a gás biodigestivo, ou seja, a pum. Mas, apesar de todo o entusiasmo com que se empenhou em fazê-lo, acabou constatando que não dava lá muito certo esse negócio.
Primeiro, porque o cheiro da descarga era insuportável! Mesmo depois da combustão, quando teoricamente o cheiro, digamos assim, de putrefação biodigestiva seria eliminado, por alguma razão que só a química conhece, o cheiro que saía lá no cano de descarga lembrava o suave aroma de um imenso ninho de ratos mortos, acrescido das meias usadas por todos os adolescentes depois da educação física e de todas as cuecas sujas esquecidas no fundo da gaveta – era o carro passar pela rua e ficava um rastro de pedestres sufocados, engasgados, alguns desmaiados, os viralatas saíam ganindo, as plantas nos jardins próximos à rua murchavam instantaneamente, os papelinhos jogados pela rua se incendiavam, enfim, eram tantas e tão incômodas as conseqüências da descarga do tal veículo, que este motivo por si só já inviabilizaria o projeto.
Mas o que acabou pegando mesmo, o que tornou o projeto definitivamente inviável, foi o modus operandi através do qual se processava o abastecimento.
Nosso peidorreiro inventor deu voltas e mais voltas no seu criativo cérebro para descobrir um modo prático de armazenar tão volátil combustível – engarrafar saía muito caro, porque um único punzinho era insuficiente pra encher uma garrafa de um litro, seriam necessários muitos punzinhos para preenchê-la, mas o gargalo da garrafa teria que ter uma válvula sofisticada para impedir que os peidos já armazenados escapassem no ato de engarrafar mais um e que não encrencasse na hora de abastecer o veículo, e tal válvula custaria tão caro que não valia a pena.
Então o único modo que ele achou economicamente viável para fazer o abastecimento, era o que ele chamou de direto do produtor para o consumidor, ou seja, ele adaptou uma mangueirinha metálica flexível (resistente à corrosão do flato) que terminava lá na câmara de combustão e que começava bem no meio do assento do motorista, cuja ponta projetada para fora deveria ser encaixada com firmeza no orifício anal do motorista, ou seja, no fiofó do chofer, ou seja, no oribozinho do piloto. E isso, além de causar um incômodo extraordinário, abalava suas convicções machistas e preconceituosas.
Fora o que, para poder fabricar bastante combustível, passou a radicalizar mais ainda na dieta, tendo que parar no boteco mais próximo a cada cinco ou seis quilômetros rodados e se entupir de porcarias engorduradas, de modo que acabou ficando doente, com todas as taxas más bem altas e todas as taxas boas bem baixas, causando má circulação, má digestão, má disposição e, além da flatulência desenfreada, arrotos que saíam queimando como lança-chamas. E ainda levou um pé na bunda – sua namorada o trocou por um balconista de perfumaria –, no que foi facilitado pelo modelito das calças que usava (como todo mecânico que se preze) que caía pela bunda abaixo, deixando trinta centímetros de rego aparecendo (o que também era muito conveniente na hora de abastecer o carro); e ainda por cima levou uma bruta multa do IBAMA por poluir o meio ambiente.
Hoje ele está melhor. Maneirou na dieta, melhorou de saúde, arranjou outra namorada e agora se dedica de corpo e alma ao seu mais novo projeto: o uso da meleca na calafetação dos veículos refrigerados.
Então, boa sorte, amigo!
Conto escrito por Maria Iaci, para o Bernardo,
em fevereiro de 2004, Brasília.