O Pão-duro,Unha-de-fome,Mão-de-vaca vai ao psicólogo.

Vladimir ignorou o aviso pendurado na porta que dizia para esperar e tocou a campainha duas vezes.Suava muito e seus pés e mãos pareciam congelados.Esperou um pouco e tocou novamente;agora uma só vez.Contrariado pela demora,pensou em ir embora e esquecer daquela idéia maluca de terapia,mas a lembrança do ultimato de Cecilia o fez permanecer ali,parado.Pouco depois a porta do consultório se abriu,e uma loura escultural vestindo calça jeans e blusa rosa saiu lá de dentro.Babando,o pão-duro acompanhou a deusa com o olhar até ela entrar no elevador.Logo depois sentiu um toque de dedos em sua costas,virou-se para trás e encarou uma mulher também loura,só que de meia idade;com tudo de bom e de ruim que isso pode trazer para o sexo feminino.Sem jeito,perguntou:

__A senhora é a doutora Alice?

__Sim.E você deve ser o ..

__Vladimir.

__ Isso!Vladimir;espere um minutinho só que eu já abro,está bem?

__Ok.

A mulher entrou na sala e fechou a porta.Encostado na parede do corredor,Vladimir ouviu o barulho de uma descarga sendo acionada no interior do consultório.Minutos depois a porta foi novamente aberta e o mão-de-vaca finalmente entrou.A primeira coisa que ele reparou é que não existia sala de espera.O imóvel possuía um pequeno e estreito corredor que conectava a porta de entrada à porta da sala de análise.Entre as duas,do lado direito de quem entrava,existia um banheiro que o unha-de-fome utilizou antes da sessão,pois estava apertado.A porta do toilette,que era de correr,conferia elegância e economizava espaço.Minutos depois,o mão-de-vaca estava sentado numa cadeira de couro de frente para a analista e não sabia como proceder.A psicóloga quebrou o gelo e iniciou a abordagem:

__Antes de tudo Vladimir,queira saber quem foi que lhe indicou meu nome.

__Foi uma amiga de minha esposa.Ela mora aqui mesmo,em copacabana.

__Então está explicado.

__O quê?

__A maioria dos meus pacientes mora mais para esse lados.Você é um dos poucos que mora na zona norte.

__Isso tem importância?

__De modo algum!É só uma pesquisa que faço com cada paciente novo....Bem,vamos começar.Por que você veio aqui?

Desde que marcara a consulta,Vladimir sabia que este momento chegaria,mas não imaginara como seria difícil falar sobre seus problemas;isto é,sobre os problemas que Cecilia achava que ele tinha,com uma pessoa que nunca tinha visto antes.Aí lembrou-se que estava pagando pela consulta e esse fato o encorajou a falar.Afinal,aquela mulher não ia ganhar o dinheiro fácil não!Vacilante,iniciou:

__Bem;minha esposa acha que eu sou um sovi..,quer dizer,um pouco econômico demais.

__Não há mal algum em ser econômico.Mas eu não quero saber o quê sua esposa acha,mas sim o que te trouxe aqui,o que te fêz vir de madureira até Copacabana num dia de semana as seis horas da tarde para conversar sobre seus problemas,ou melhor,sobre você.

__Minha esposa deixou claro que se eu me recusasse a vir nosso casamento estaria acabado

__Entendo...E como você se sentiu com relação a isso?

__Como assim?

__Ficou angustiado?Com medo?Em pânico?

__Olha;sinceramente eu não sei explicar.Sou casado há bastante tempo e me acostumei com minha vida assim,entende?A possibilidade de mudança repentina me assustou.

A terapêuta balançou a cabeça afirmativamente e anotou alguma coisa na prancheta que segurava.Depois perguntou:

__Qual é a sua profissão?

__Sou dono de uma ótica e sócio de uma locadora .

__E os negócios vão bem?

Ao invés de responder logo a pergunta,Vladimir ficou admirando o relógio branco de ponteiros prateados que ornamentava a parede em frente a sua poltrona.Aproveitando a "deixa",a psicóloga disse:

__Não se preocupe;ainda temos bastante tempo de sessão.Pode responder agora.

__Atualmente venho passando por algumas dificuldades de fluxo de caixa mas,em breve,tudo deve estar novamente nos trilhos.

__Você me disse há pouco que não gosta de mudanças repentinas.Como se sentiu diante desta turbulência nos seus negócios?

__Não me afetou muito não;fiquei um pouco ansioso,nada mais.

__Você está dormindo bem?

__As vezes eu acordo no meio da noite para ir ao banheiro...

A analista fez mais anotações em sua prancheta e formulou nova questão:

__A vida íntima com sua esposa;como é?

__Ela está gravida.

__E daí?Ela esta grávida,não doente.

__Ultimamente temos tido algumas dificuldades no nosso relacionamento..

Mais uma anotação foi escrita na prancheta e nova pergunta :

__Você tem muitos amigos?

__Hoje em dia ninguém tem muitos amigos...Eu devo ter.....Uns três ou quatro bons amigos...É isso...Três ou quatro...O resto é conhecido

__Humm...Entendo;agora me diga:como era o relacionamento de você com sua mãe?

O unha-de-fome estranhou a questão.O que é que uma coisa tinha a ver com a outra?Protestou:

__Não entendi a pergunta.

__Vladimir;eu sigo a linha psicanalítica,e,nesse caso,é imprescindível a análise de toda a sua vida pregressa.

__E se eu não quiser falar?

__O tratamento não vai evoluir de maneira satisfatória,pois quem dá o ritmo da terapia é o paciente.

Silêncio.Percebendo que pisara em areia movediça,a terapêuta resolveu fazer um recuo estratégico.Mudou de assunto:

__Vamos esquecer por hora este detalhe.A primeira sessão é usada para se ter uma idéia do universo do paciente e a sua motivação para o tratamento.

__Você acha que eu estou motivado?

__Sinceramente?Não acho não.

__Mas eu vou fazer o que for preciso Dr.Alice!Não posso arruinar meu casamento!

__Você não pode é se arruinar Vladimir.

Enquanto pensava no que a doutora dissera,o unha-de-fome observou um recipiente metálico semelhante a um copo térmico de cerveja que estava em cima de uma mesinha ao seu lado,e notou que ele continha alguma coisa em seu interior e estava envolto numa espécie de redinha plástica azul,semelhante as embalagens em que são vendidos os limões na feira.Resolveu alertar a terapêuta:

__Doutora.Algum paciente comeu nozes e jogou as cascas dentro da sua caneca!E ainda deixou uma redinha em cima dela!

Segurando o riso,a psicóloga respondeu:

__Não é uma caneca Vladimir;é um sachê aromatizante.E,por sinal, está quase no fim.

__Ah...Se a senhora não quiser mais,pode me dar que eu arrumo uma utilidade para ele.

__Eu disse que ele está QUASE no fim.Quando acabar eu te dou,está bem?

__Combinado.

A terapeuta percebeu que deveria encerrar as perguntas por ali.Faltava pouco tempo de sessão.Aproveitou os minutos finais para acertar alguns detalhes:

__Vladimir;O preço da consulta eu já te disse por telefone;agora eu vou fazer o nosso contrato.

O mão-de-vaca tomou um susto.Contrato?Mas ele estava sem o seu advogado!Não assinaria nada!Porém,ao invés de um papel timbrado,em três vias e com firma reconhecida,tudo que veio foram mais explicações da psicóloga:

__Você deveria fazer três sessões por semana,mas concordo que atrapalharia seu trabalho;portanto,faremos duas.

__Duas?Mas eu pensei que uma bastasse!

__No seu caso,uma vez seria insuficiente.Outra coisa importante:se você faltar,tem que pagar a consulta do mesmo jeito.

__O QUÊÊÊÊÊÊÊÊÊ?__Vladimir arregalou os olhos e abriu a boca__A senhora só pode estar de brincadeira comigo!E se eu tiver um contratempo no trabalho e não puder vir?

__Você paga.

__Ora;é muita moleza!Assim eu também quero!

__Você está me chamando de desonesta?

A terapêuta respirou fundo e usou todo seu autocontrole para não dizer o que tinha vontade,pois sabia que aquele homem precisava de ajuda.Esperou a resposta,que logo veio:

__Não....Mas é muito estranho.

__O quê?

__Ganhar sem trabalhar!

"Outra espetada",pensou a psicóloga.Essa,ela devolveu:

__Como eu te disse,estas são as regras do contrato.E tem outra coisa.

__Mais?

__Sim.O pagamento será sempre em dinheiro e no início da sessão.

Vladimir trincou os dentes com tanta força que sentiu sua mandíbula doer.Aquela mulher estava tendo um delírio!Se ele faltasse pagaria do mesmo jeito!E sempre em dinheiro!?Lembrou então de uma conversa que tivera tempos atrás com o seu contador,na qual o homem,que também fazia terapia,reclamava justamente das consultas a que não podia comparecer e que tinha de pagar mesmo assim.O mão-de-vaca concluiu que deveria ser uma praxe na área,e,pensando na reação da mulher caso não aceitasse os termos,respondeu:

__Tudo bem,eu concordo.

__Ótimo!__disse a terapêuta,surpresa com a concordância rápida,e continuou__Já tenho o telefone de sua casa;agora vou pegar o número do seu celular para o caso de acontecer algum imprevisto.

O unha-de-fome lembrou que havia arremessado o aparelho contra a parede e pisado em cima dele num acesso de fúria,e achou que não ficaria bem contar o detalhe;pelo menos na primeira sessão.Pensou rápido e "soltou a lorota":

__Estou trocando de operadora.Quando pegar o novo celular eu te dou o número,ok?

__Mas agora não se pode manter o mesmo número com a portabilidade?

__É..Pode;mas é que eu quero trocar de número mesmo.O antigo não me deu muita sorte..

__Nós é que fazemos a nossa sorte Vladimir...Mas tudo bem;quando tiver o número você me dá.

__Combinado.

__Olha lá__a terapeuta mostrou o relógio__Nossa hora terminou.Agora você pode pagar a consulta

__Hoje eu só trouxe cheque.Não sabia que tinha que ser em dinheiro.

__Não tem problema__simplificou a analista__É a partir da próxima vez que as regras entram em vigor.

Com muita má vontade,Vladimir tirou uma folha de cheque da carteira e a preencheu com o valor da sessão.A psicóloga teve que se esticar ao máximo para conseguir pegar o papel das mãos do unha-de-fome,que parecia estar sentindo algum tipo de dor lancinante ao ver seu dinheiro indo para as mãos da analista.Depois,sem jeito,o mão-de-vaca saiu da sala e dirigiu-se à porta de saída,acompanhado pela terapêuta.Antes de sair,limpou os pés num tapete que estava do lado de dentro do imóvel,do mesmo jeito que fizera ao entrar.Desta vez a psicóloga não se conteve e disse:

__Vladimir;o capacho está lá fora;isto é um tapete.

O unha-de-fome percebeu que dera outro fora,mas tentou concertar:

__É que as cores são parecidas,e o tapete é felpudo...

__Tudo bem,não tem problema__tranquilizou a doutora.

"Na verdade tinha problema sim",pensou ela:aquele tapete havia custado horrores numa loja caríssima de decoração e não era para servir de capacho para ninguém.

Paciente e terapêuta despediram-se.Fora da sala,encostado na parede do corredor,o próximo neurótico já esperava,impaciente,sua consulta.Vladimir deu sorte e pegou logo o elevador.Enquanto descia na cabine de aço,o mão-de-vaca pensava nos seus problemas:tinha que pegar o carro na oficina e pagar o conserto,comprar um novo celular,dar um jeito de resolver a situação da chantagem que estava sofrendo por parte do coroa do vídeo erótico,administrar a ótica,e se acertar com Cecilia.Além de tudo isso,logo seria pai e agora ainda teria de arrumar dinheiro para pagar sua terapia.

O elevador chegou à portaria;confuso,o sovina deixou o prédio e misturou-se ao formigueiro humano presente nas calçadas ....

arqueiro
Enviado por arqueiro em 08/03/2009
Reeditado em 23/07/2017
Código do texto: T1476659
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