Vando Gleber: o homem, a lenda
Inaugurada em São Paulo a exposição do pintor austríaco Vando Gleber, que celebra o centenário de nascimento desse grande expoente da pintura moderna mundial. A seguir, a descrição de algumas das principais obras expostas, acrescida de dados biográficos que contribuem para a elucidação da misteriosa personalidade que sempre caracterizou esse gênio da arte.
MAMÃE ME ESPANCANDO, 1922
Famosa tela em lápis de cera, onde Vando Gleber, ainda com cinco anos de idade, já revela traços característicos de seu trabalho como o hábito de comer lápis de cera enquanto pintava as suas obras. Gleber manteve o hábito de comer lápis de cera durante toda a sua vida, o que segundo os estudiosos, contribuiu decisavamente para a formação da úlcera que o impedia consumir condimentados. Essa abstinência forçada, aliada à profunda incompetência culinária de sua última mulher, deixava todos as suas refeições sem nenhum sabor, o que foi apontado como um dos motivos para a décima-primeira das treze tentativas de suicídio do pintor. A tela (datada de 1922, muito embora a caligrafia de Vando Gleber seja péssima, o que deixa dúvidas se a obra foi pintada em 1955), revela uma visão pueril da rica fazenda onde Gleber morou durante a primeira infância. Filho dos seus pais desde que nasceu, Gleber foi uma criança doente, que vivia de cama e que considerava o estábulo um lugar mais confortável do que seu quarto. “Mamãe Me Espancando” revela muito da personalidade daquele que um dia iria se tornar um adulto vitimado “por um curioso caso de complexo de inferioridade associado à um quadro de egocêntrismo patológico”, segundo palavras do psiquiatra que o tratou na última de suas dezessete internações. Migalhas de lápis carcomido podem ser identificados logo abaixo da casinha e ao lado da árvore de maçãs. O homem com o balde entalado na cabeça é provavelmente o austero Hans Gleber, a quem Vando Gleber descreve amorosamente em sua biografia como um “panaca”: “Papai vivia colocando baldes cheios dágua em cima da soleira da porta pra pregar uma peça em quem entrava na sala. No entanto, sua personalidade era inquieta e se ninguém entrasse na sala depois de dez minutos, ele mesmo abria a porta e pregava a peça em si mesmo, pra depois ficar gargalhando sozinho”. A figura da mãe opressora surge representada pelo martelo desenhado à esquerda, ainda que Gleber tenha dito em sua biografia que a sua intenção era desenhar uma coluna grega. Durante toda a sua vida, Vando Gleber foi obcecado por colunas gregas, muito embora nunca tenha conseguido desenhar uma satisfatóriamente, talvez pela sua notória dificuldade em manipular uma régua. No quadro “Coluna Grega”, pintado trinta anos depois, ele acreditou ter cumprido a sua meta, mas os críticos da época disseram que, na verdade, Vando Gleber havia desenhado uma girafa, o que muito contribuiu para uma nova crise depressiva do pintor.
OLGA NUA, 1937
A famosa tela à óleo, “Olga Nua” pertence ao turbulento período parisiense, quando Gleber, ainda com vinte anos de idade foi enviado para a capital francesa por seus pais, a princípio para estudar pintura. Fontes não-oficiais, no entanto , asseguram que Gleber foi expulso de casa após ter sido flagrado praticando obcenidades com um bode da fazenda. Gleber sempre negou o episódio, mas aparentemente ficou muito consternado quando o bode foi impedido de entrar no navio no dia do embarque. Em Paris, o jovem pintor dividiu moradia com o intelectual francês Pierre Lacroais. Numa carta escrita à seu irmão Nando Gleber, ele descreve o apartamento como sendo “tão minúsculo que quando um está dentro, o outro tem que ficar do lado de fora”. A imundice do apartamento também é sugerida no trecho a seguir, quando Gleber diz que “muitas vezes eu prefiro ficar do lado de fora”. Segundo dados históricos, Olga era a velha zeladora do prédio que infernizava a vida dos dois amigos com reclamações sobre acionamento da descarga depois das dez e o barulho que eles promoviam quando jogavam xadrez, o que faziam de madrugada, sempre cantando em altos brados canções folclórias irlandesas como estratégia para desconcentrar o oponente. Ao que parece, Vando Gleber pintou a zeladora nua como uma retaliação à uma multa lavrada pelo condomínio quando ele deixou uma cueca secando do lado de fora da janela. Quando o quadro ficou pronto, Pierre deu boas risadas com a peraltice, mas quando um orgulhoso Gleber mostrou a pintura para outros moradores, a maior parte deles acreditou que se tratava de um auto-retrato, o que desmoralizou completamente o jovem pintor, gerando a grande crise melancólica que inaugurou a sua Fase Negra.
NOITE ESCURA COM SOMBRAS E SEM LUZ, 1939
Nessa perturbadora tela de 1939, o artista revela toda a sua solidão, amargura e desespero, além do seu número de telefone para contatos profissionais, desenhado discretamente no canto esquerdo do quadro, logo abaixo da assinatura. Foi um período especialmente difícil para o jovem Vando Gleber. Apaixonado pela prostituta Genèvieve Cevert, ele gastou toda a sua poupança na compra de flores e acabou ficando sem dinheiro pra pagar o programa, o que o fez mergulhar em profunda depressão. O quadro “Noite Escura Com Sombras e Sem Luz” era inicialmente intitulado “Luz do Fim de Tarde em Paris”, mas Gleber mudou o título depois de deixar cair sem querer um pote de nanquim em cima da tela. Foi nesse período que ele conheceu Picasso, de quem se tornaria amigo íntimo, apesar de Picasso nunca lembrar do seu nome, se dirigindo a ele sempre como “gente boa”, o que muito amargurava o jovem pintor. No ápice de uma crise melancólica, Gleber escreveu uma carta de cinco páginas para Picasso, onde ele assinava “Vando Gleber” setenta e duas vezes na esperança que Picasso finalmente decorasse seu nome, mas o CEP foi preenchido incorretamente e a carta foi extraviada.
A MENINA E AS FLORES, 1942
O auge da Segunda Guerra curiosamente significou um raro período de calmaria e felicidade para Vando Gleber. Segundo relatos da época, Gleber, que era um pacifista convicto, compareceu à sede da Resistência em 1942 e declarou ao general que não pretendia jamais pegar em armas, ao que o general teria respondido: “ainda bem, porque você foi reprovado no exame psico-técnico”. Após vasculhar os destroços de um prédio bombardeado em busca de algum suvenir, Gleber pintou, ninguém sabe por que, “A Menina e as Flores”, que viria a inaugurar o que ele chamou a princípio de “fase rosa”, antes de mudar de idéia e chamar essa fase de “fase violeta”. Quando o nome da fase virou “fase verde”, alguns críticos começaram a desconfiar que o nome das fases era diretamente condicionado às tintas que estavam disponíveis no famoso mercadinho do Monsier Gachot. Numa carta endereçada ao seu irmão Nando Gleber, o artista se queixa dos serviços prestados no mercadinho: “todas as minhas tintas cheiram a queijo, o que não seria tão ruim se o queijo não fosse gorgonzola”. Numa outra carta, ele se refere à mulher de Monsier Gachot como “uma porca asqueirosa, que limpa o enorme nariz antes de me servir com as mãos nojentas um pedaço de marmelada”. O desabafo de Gleber não teria maiores consequências se ele não tivesse preenchido o endereço errado e a carta fosse parar nas mãos da própria mulher do Monsier Gachot, que após a leitura, tentou matá-lo com uma empadinha de azeitona envenenada. Anos depois, o célebre mercadinho de Monsier Gachot foi retratado na tela “A Pocilga do Puto”, que Vando Gleber deu de presente à Monsier Gachot em troca da compra de um saco de farinha. Aparentemente, Gachot achou o trabalho interessante, mas anos depois, a tela foi encontrada calçando o pé do balcão. “A Menina e as Flores” foi a primeira pintura de Vando Gleber selecionada para o Salão Internacional de Pintura de Viena, mas o que poderia ser uma grande alegria para o pintor, acabou desencadeando uma grande crise depressiva, depois que ele descobriu que “A Menina e as Flores” havia sido catalogada no Salão com o título de “O Macaco e a Bola”. Amargurado, Gleber só não deu cabo da própria vida porque, dias antes de comprar a arma, ele recebeu a notícia que o dono de um circo havia se interessado pelo quadro, oferecendo em troca da obra dois ingressos para a matinê de domingo. Inaugurava-se a partir daí a fase circence de Vando Gleber, onde a alegria do veterano palhaço Coquet inspirou telas como “Coquet, Com a Bunda na Pia”. Gleber, inclusive, deu o quadro de presente ao próprio Coquet, ao que tudo indica para amortizar o pagamento de uma dívida, já que nas horas vagas o velho palhaço praticava agiotagem.
A SANTA CEIA, 1944 (FRAGMENTO)
As ligações de Vando Gleber com o Partido Comunista começaram no dia em que a alta cúpula dirigente decidiu que era hora de reformar o puxadinho da sua sede clandestina em Paris. Vando Gleber se ofereceu pra fazer o serviço de pintura e, inadvertidamente, pintou por cima de uma parede mofada a sua famosa versão de “A Santa Ceia”, o que obviamente horrorizou os dirigentes partidários. Intimado a pintar tudo de vermelho por cima, Gleber propôs retirar a parede inteira com a ajuda de uma picareta na tentativa de salvar o afresco de três metros de altura e colocá-lo no seu apartamento, que na época ele dividia com a sua segunda esposa e oito gatos (os oito gatos costumavam dormir na cama, no lugar de Gleber, o que normalmente o deixava tão possesso que nas suas piores crises de fúria, ele fazia questão de usar a caixa de areia pra fazer suas próprias necessidades como forma de vingança). O barulho da picareta infelizmente chamou a atenção da Gestapo, o que desencadeou o famoso episódio da invasão da sede do Partido em 1943. Segundo relatos de testemunhas, durante a invasão, Vando Gleber pintou no próprio rosto um bigodinho de Hitler, o que lhe valeu a simpatia dos oficiais nazistas, que inclusive permitiram que ele levasse consigo um dos azulejos que compunham parte da parede. Infelizmente, como podemos ver nessa exposição, Gleber ainda não havia pintado nada em cima dele.
OS FREGUESES DO BISTRÔ MONPATISSE, 1947
Na euforia do pós-guerra, Vando Gleber frequentou os mesmos requintados salões de festa onde personalidades como Chaplin, Einstein, Fritzgerald, Sartre e Doroty Parker destilavam longas e agradáveis conversas filosóficas. Gleber volta e meia tentava participar do papo, mas como ele só estava na festa por causa do bico que fazia como garçom, normalmente o seu superior o mandava de volta à cozinha pra pegar outra bandeja de canapés. Isso aparentemente alimentou um grande sentimento de raiva contra as distâncias sociais e o resultado disso é o seu quadro “Os Fregueses do Bistrô Monpatisse”, impregnado de contundente crítica social, conforme podemos observar na maneira grotesca como o pintor retratou figuras importantes da política da época. À esquerda, comendo a própria meia, está Wiston Churchill. No centro, com o nariz mergulhado naquilo que parece ser uma poça de baba, está o primeiro-ministro Alfred Mirrau e à esquerda, (de novo ao lado de resquícios de lápis de cera carcomidos) com uma colher enfiada no olho, o ministro da cultura francesa, Gerard Leviève. O detalhe revolucionário é o uso das legendas explicativas, abaixo de cada figura, que Vando Gleber escreveu porque ninguém reconhecia as figuras públicas em seu quadro. Um comerciante, de nome Claude Versage, inclusive achou que quem estava com a colher no olho era a sua própria mãe e, julgando-se ofendido, desferiu um soco em Gleber que lhe deslocou o maxilar, o que contribuiu e muito, para o agravamento do problema de distonia fonética que acompanhou o pintor até o final da sua vida e que o fazia dar sempre um assobiozinho no final de palavras terminadas em “y”. Segundo estudiosos, sua fama de tarado e libertino cresceu muito mais por esse fato do que pelas polêmicas telas eróticas exibidas no Salão de Praga em 1948: “Alcova na Cova” e “Entrando pelos Fundos, Um Estudo Pictórico-Anatômico”.
A INDIA E O TUCANO, 1958
A tela “A India e o Tucano” inaugura a fase mediterrânea de Vando Gleber. Em 1952, pobre e esquecido por todos a não ser pelos agiotas, ele embarcou num navio com a intenção de morar no Taithi e explorar todas as cores fascinantes do arquipélago. Infelizmente, Gleber se enganou na hora de comprar a passagem no guichê e acabou indo parar na Sibéria, o que não teria sido tão ruim se ele não tivesse esquecido o casaco em casa. “Pintar as cores da Sibéria teria sido maravilhoso, se eu tivesse encontrado algum lugar que vendesse tinta branca”, ele escreveu em sua auto-biografia. Após descobrir que a sua mulher havia partido de Paris para buscá-lo e que chegaria à Sibéria ainda antes do jantar, Gleber aliciou um filhote de foca de propósito e acabou sendo preso numa prisão de segurança máxima. O convívio com grandes facínoras foi extremamente enriquecedor para Gleber. “Nunca me senti tão adequado socialmente”, ele escreveu ao irmão Nando em outubro de 1953. Seus desenhos a carvão do período são considerados traduções agudas do sofrimento do cárcere e um crítico da época escreveu num semanário francês que “a obra de Gleber produzida na prisão provoca calafrios, e isso não é um elogio.”
Solto por bom comportamento e por se recusar a tomar banho, o que incomodava profundamente os outros presos, Gleber embarcou para o Taithi em 1954. O navio desapareceu em 1955 no Oceano Pacífico e logo após ser encontrado em 1956, afundou na costa da Polinésia Francesa em 1957. Gleber foi localizado boiando num pedaço de barril em 1959 e sua primeira declaração depois do resgate foi a de que o serviço de bordo havia sido péssimo. Instalado no arquipélago francês, Gleber desfrutou de um breve período de calmaria, pintando quadros como “A India e o Tucano”, que compõe essa exposição. A índia retratada na pintura, de nome Theng-Hoy-Sun, foi a sua esposa durante o período, mas a relação terminou quando Gleber descobriu que ela estava grávida. Theng-Hoy-Sun aparentemente procurou tranquilizá-lo, dizendo que o filho não era dele e sim do tucano, mas em 1963, depois de sobreviver a mais dois naufrágios, Gleber retornava a Paris.
FLOR NO CANTO DO QUADRO E NÃO ME ENCHA O SACO, 1965
Contrariando todos os prognósticos, Vando Gleber teve a sua obra reconhecida no final da sua vida. Movimentos anti-academicistas o elegeram como um ícone da desconstrução pós-moderna. Símbolo da ruptura com os valores clássicos e arcaicos, suas telas alimentaram ideais revolucionários e paradoxalmente cairam no gosto da burguesia vigente, gerando milhões em galerias de arte e leilões. Muitos amigos miseráveis de Vando Gleber se arrependeram amargamente por terem jogado no lixo as obras que o pintor nos tempos de pobreza havia dado de presente e ficou célebre o episódio onde seu amigo de infância, Edmund Jarier, pulou no Reno atrás de uma tela e morreu afogado. O Museu d´Orsay o convidou para fazer uma mostra e Gleber concordou , desde que os quadros não ficassem expostos no banheiro como da última vez. “Flor no Canto do Quadro e Não Me Encha o Saco”, reflete o sentimento de Gleber, que no final da vida se divertia pintando um ou outro detalhe num quadro branco enorme, pra depois colocá-lo a venda por alguns milhões. “Tenho mais trabalho pra contar o dinheiro do que pra fazer meus desenhos”, ele escreveu a Nando Gleber em 1966, numa carta onde ele o convidava para uma temporada no castelo que havia comprado em Avignon. Essa foi a última carta enviada por Gleber que, até o final da vida, guardou um grande ressentimento por Nando não tê-la respondido, talvez por não se lembrar que o irmão estava morto havia três anos. Vando Gleber o acompanharia em 1967, mas antes disso, a vida lhe concedeu o ápice da sua satisfação. Foi durante uma homenagem que o governo francês lhe promoveu no Palácio de Versalhes. A nata da alta-sociedade européia estava presente e Pablo Picasso era um dos convidados. Quando Picasso estendeu a mão para cumprimentar Gleber, o pintor austríaco simplesmente disse: “eu te conheço?”.
E a audiência explodiu em gargalhadas.