ALGUÉM DO ALÉM
Primeiras horas da manhã dum dia de férias e ela ainda sonolenta atendeu ao telefone, certa de que alguém do além, bem lá "de cima" daquele claro céu de verão, sabia exatamente a melhor hora do seu sono.
Ruminou a raiva e cedeu ao aparelho incoveniente...
-Alô?
Mas o "alguém do além" era o seu namorado... aqui da Terra mesmo.
Se existia alguém acima de tudo, aliás "de acima" de qualquer defeito, decerto que era ele.
Acima de qualquer suspeita, de qualquer erro, de qualquer gafe, de qualquer destempero, enfim , se existia alguém de fato acima da realidade, era ele. "De balança", parecia uma réplica do equilíbrio e da perfeição.
Um exemplo de educação virtual, daquelas que não mais se vê hoje em dia. De fato, um gentleman.
-Oi, bom dia!-respondeu em tom melancólico.
-Nossa, a essa hora? Mas o que aconteceu?
-Ele morreu! Estou num velório.
-Santo Deus, ele quem?-perguntou assustada.
-O meu tio...tio bisavô. E era português!-fez questão de enfatizar.
-Tio bisavô? O quê? Mas você AINDA tinha tio...bisavõ? Você nunca me falou dele-concluiu meio sem graça com o seu susto diante daquela novidade tão súbita!
-É, mais ele AINDA existia, a família é bem grande e português é gente forte! E eu estou lhe ligando para me desculpar. Julgo que falhei "muito" com você.
-Comigo? Mas o que houve? O que foi que você fez, homem?
-Eu nunca lhe falei dele. Fui muito omisso.
-Tudo bem, nada sério.
-Nem lhe apresentei a ele, o que é pior!
-Mas o que tem isso de grave?
-Tem que ele...morreu!
-Acontece, ela lhe respondeu sem acreditar no que ouvia.
-Ele se foi...e sem lhe conhecer! E agora? Estou inconformado. O que você me diz?
-Dizer...sobre o quê, meu amor?
Eu explico. Deveras, ela não sabia o que lhe dizer. Alguém se fora para o além. Mas alguém que ela não conhecera. E como chorar com as lágrimas do coração pela morte de alguém que não conhecemos? O que dizer nessas horas para alguém do além, vivo? Meus pêsames? Meus sentimentos? Não queria soar falsidade.Melhor se calar.
Mas ele não se calou.
-E nem tive como trazê-la ao velório, você me perdoa?
-Hã? Ah, claro que lhe perdoo! Tá desculpado!
-Você está tão triste como eu, não está?
-Claro que estou, não deve ser nada fácil perder o tio bisavô! Minhas condolências.
Sentiu-se lisonjeada, mas indigna daquele ser tão perfeito.
Mas enfim , achara a palavra perfeita. Condolências! Quase a qualificou com "sinceras". Mas achou hipérbole demais!
Ademais, não sabia muito bem a exata denotação da tal palavra, mas sentiu que se encaixava bem para a situação. Nas letras também existe "intuição". Nem sentimento demais...nem sentimento... de menos! Uma palavra no ponto. Como devem ser a vida , e até a morte: algo no ponto.
Sentiu-se aliviada, pois afinal saíra estratégicamente daquela situação do além...
E tão elegantemente como aquele alguém...também do além!
(VERÍDICO)