IN MEMORIAN

Acabo de receber a notícia da morte de Alírio Tavares, que sem dúvida nenhuma foi um dos maiores diretores teatrais do nosso país. Um artista à frente do seu tempo e a prova maior disso é que quase ninguém do nosso tempo sabe quem foi o Alírio e aparentemente muito pouca gente teve tempo pra ir ao enterro. Tive a honra de trabalhar para o Alírio em diversas oportunidades, muito embora na maior parte delas, ele tenha me demitido. Depois, virei empresário, contratei o Alírio e o demiti logo em seguida, mas ele ignorou o fato e apareceu pra trabalhar normalmente no dia seguinte, o que me obrigou a demití-lo por mais três vezes até que ele entendesse o recado.

Lembro quando conheci Alírio, numa festa da classe teatral. Ele já era uma espécie de lenda no nosso meio, desde o dia em que, ainda como um mero estágiário de produção, mandou Paulo Autran plantar batatas durante os ensaios de “Antígone”, ao que Paulo, segundo consta, respondeu: “eu te conheço?”. Na euforia dos meus vinte e poucos anos, me apresentei como um jovem ator que ao mesmo tempo era um grande fã e descrevi entusiasmado o quanto a sua versão de “Esperando Godot”, encenada exclusivamente por anões havia mudado a minha vida e o quanto eu achava maravilhosa a sua idéia de colocar o Godot aparecendo no final, na antológica cena onde ele perguntava pro público onde era o banheiro. Assisti ao espetáculo seis vezes, sendo o único espectador em pelo menos quatro. Lembro de ter encontrado o Alírio na platéia depois de uma das apresentações. Pensei em cumprimentá-lo, mas ele estava dormindo profudamente desde o início do segundo ato e não acordou nem quando o segurança lhe jogou um copo d´agua na cara. Anos depois, durante aquela festa da classe teatral, ele estava desperto, mas completamente bêbado. Desconfiado da pureza da minha admiração, ele provavelmente imaginou que os meus elogios fossem uma espécie de gozação e me mandou pro inferno pra depois vomitar aos pés da parede e foi nessa hora que eu pensei que aquele homem era definitivamente carismático.

Na minha opinião, o grande diferencial de Alírio era que, ao contrário dos diretores da sua geração, ele nunca se importava efetivamente com a iluminação ou com a sonoplastia dos seus espetáculos. Figurinos, maquiagem e adereços tampouco o interessavam, da mesma forma que o trabalho do ator e o texto do dramaturgo costumavam aborrecê-lo profundamente. Perguntado numa palestra por que ainda fazia teatro, mesmo achando tudo no teatro um saco, ele respondeu que era por causa dos descontos nos restaurantes que davam permuta pras peças que ele dirigia. No auge da carreira, Alírio tornou-se um radical, como todo o grande artista. Ficou célebre na história do teatro moderno a sua versão de “O Avarento”, de Molière, que ele dirigiu sem ter comparecido a um único ensaio sequer. Na noite da estréia, Alírio foi reconhecido na platéia e declarou que só estava lá pra filar os canapés do coquetel. Paradoxalmente, um suplemento cultural acabaria considerando “O Avarento” como um dos seus melhores trabalhos, o que Alírio interpretou como uma ironia, desferindo, dias depois, um soco na boca do crítico durante um jantar no Piolim.

Alírio Tavares foi, acima de tudo, um revolucionário. No intuito de demonstrar a força da incomunicabilidade no mundo contemporâneo, Alírio impediu a entrada do público no teatro durante a temporada de sua versão para "Otelo". A peça acontecia à portas fechadas, e por uma única frestinha as pessoas podiam observar a encenação num esquema de revezamento. Obviamente a ousadia da proposta foi mal interpretada e a peça foi um fracasso retumbante.

Seus espetáculos eram marcados por altos e baixos e talvez tenha sido por isso que ele achou que seria uma boa idéia encenar "Romeu e Julieta" a bordo de uma montanha-russa. Quando o parque de diversões cancelou o projeto no meio dos ensaios argumentando que os atores não limpavam os bancos dos carrinhos a cada crise de vômito, Alírio entrou numa profunda depressão e mergulhou naquela que ele mesmo definiu como “minha fase viceral”, onde, durante cinco anos, dirigiu oito peças infantis e um texto de teatro espírita.

Alírio revolucionou o teatro infantil brasileiro, incorporando às encenações o que ele chamava de “violência lúdica” . Foi a inspiração de Alírio que trouxe aos palcos cenas inesquecíveis como o esquartejamento do lobo mal e o ritual satânico promovido pelos sete anões em torno do corpo de Branca de Neve. Após uma das matinês de “O Patinho Feio No Mundo da Cirurgia Plástica”, Alírio foi agredido por um grupo de pais católicos e, desgostoso com a Igreja, converteu-se ao espiritismo, aceitando posteriormente dirigir uma comédia dramática psicografada pelo espírito de Pirandello, intitulada “Não Fui Eu Que Escrevi Isso”. No entanto, o processo de ensaios foi extremamente conturbado. Logo no primeiro trabalho de mesa, houve uma séria divergência durante uma sessão do jogo do copo, quando descobriram que uma das médiuns estava empurrando o copo com o dedo pra que um espírito zombeteiro respondesse “sim” à uma pergunta que lançava dúvidas sobre a masculinidade de Alírio. O clima piorou às vésperas da estréia, quando espíritos de luz se recusaram a sair de cena no final da peça, impedindo o black-out de encerramento. Insatisfeito com a baixa qualidade do texto, Alírio ameaçou processar Pirandello e só desistiu depois que seu advogado alegou que teria grandes dificuldades em entregar as intimações judiciais. Mesmo assim, “Não Fui Eu Que Escrevi Isso” foi um dos grandes sucessos de sua carreira como diretor e durante dois meses de temporada a casa sempre esteve cheia, muito embora setenta por cento do público fosse formado por espíritos que nunca aceitaram pagar sequer a meia-entrada.

Etlético e inquieto, Alírio também emprestou seu talento à espetáculos de ópera. Sua montagem de Carmem chocou os críticos que aparentemente não entenderam sua opção revolucionária de excluir as músicas da encenação, o que deixava os cantores o tempo todo com cara de bobo. Foi nessa época em que ele deu a bombástica entrevista onde, livremente inspirado por John Lennon, afirmou categoricamente que era um artista mais popular que Jesus Cristo, o que, numa entrevista posterior, ele desmentiu alegando que estava bêbado. “Na realidade, eu sou tão popular quanto Ele.”, ele reinterou, pra depois dizer numa entrevista seguinte que estava bêbado de novo. Entretanto, suas declarações polêmicas lhe renderam o boicote da imprensa que durante anos se recusou a publicar as críticas sobre seu trabalho e os anúncios de venda de seus carros usados nas páginas de classificados. Desgostoso, Alírio partiu para a sua fase popular, onde enveredou para o teatro de rua, se preocupando sempre em nunca revelar exatamente onde eram as ruas em que aconteciam suas peças, de forma que muito pouca gente testemunhou essa fase do artista.

No final da vida, decadênte e incompreendido, Alírio recorreu ao teatro pornô para pagar as suas contas. Mais uma vez, a marca da sua genialidade se manifestou e Alírio foi revolucionário ao levar pro palco erótico, pela primeira vez, cachorros, cabritos e uma enguia. No espetáculo “Sexo Animal”, Alírio foi além e após uma briga com uma das atrizes, achou que não haveria problema abrir mão daquilo que costumava considerar “o pior da raça humana: os homens e as mulheres”. Claro que a peça foi um fracasso e Alírio, mais uma vez, mergulhou em profunda depressão.

E sabendo que não lhe restavam muitas opções, ele acabou largando o ofício de diretor e virou ator de novela. Pouco tempo depois, morreria, sob o signo do incorformismo.

Leonardo de Faria Cortez
Enviado por Leonardo de Faria Cortez em 11/01/2009
Código do texto: T1378639
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