O Velório do Tio Nonô

Pode parecer estranho mas o tio Nonô sou eu. Onofre é o meu nome de batismo; ou foi, sei lá...

Minha família é grande, somos em oito irmãos, cinco homens e três mulheres, nesta ordem: Olegário, Olga, Onofre, Osvaldo, Olinda, Oristides, Ormando e Orminda, estes dois últimos são gêmeos. Olegário, o mais velho, já faleceu há uns dois anos. E agora eu também. E no enterro do Olegário ainda brinquei com os outros dizendo que se o próximo defunto fosse um dos homens, os restantes iam ficar empatados: três homens e três mulheres.

Todos eles se casaram, tiveram filhos e netos, menos eu. Resolvi ficar solteirão, mas sempre cuidei dos meus sobrinhos como se fossem filhos, era com muito carinho que eles me chamavam de tio Nonô. Tive uma vida muito boa. Adorava festas, a família toda sempre foi muito festeira.

É por isso que eu já estou vendo aquela movimentação toda na casa do meu irmão Osvaldo. Estou prestes a sair do necrotério e acho que é lá que vai ser o velório, Osvaldo tem uma bela casa com jardim, piscina, salão de jogos, tudo muito grande. Me enfiaram num terno cinza riscado, completamente fora de moda, com uma gravata roxa, estou horrível. E também não precisava de tanto algodão no nariz, mas tudo bem, não estou sentindo nada mesmo.

Neste momento Osvaldo e o meu sobrinho Charles, filho da Olga, estão lá na casa, conversando sobre o melhor local pra me colocar. Meu irmão acha que o esquife poderia ficar no jardim, ao ar livre, mas Charles o convence de que o melhor local é o salão de jogos. Estamos no verão, o tempo pode mudar e cair uma daquelas chuvas mais tarde. Além do fato de que a molecada vai querer correr e jogar bola no jardim. Não ia ser legal se a bola caísse no caixão e um sobrinho-neto tivesse que ir buscá-la. Ormando e Orminda ficaram aqui comigo, cuidando da logística, e foram bem ágeis. Já estou embarcando no carro da funerária e não são nem dez da manhã ainda.

Perdoe-me o leitor por eu estar misturando os tempos e locais do evento; é que depois de morto a gente perde um pouco essa noção.

Eu sempre comentei com familiares e amigos que gostaria que meu velório fosse uma festa, uma ocasião alegre. E foi mesmo; também, quem mandou morrer numa madrugada de sexta pra sábado em pleno mês de janeiro? E o dia amanheceu limpo, ensolarado, com "céu de Brigadeiro", como diria um amigo piloto de avião.

Bem, cheguei à casa de Osvaldo e me levaram direto pro salão de jogos. O funcionário da funerária queria me largar em cima da mesa de sinuca, vejam se pode uma coisa dessas... "não, lá no outro canto" gritou o meu irmão. Era lá mesmo que eu queria, ao lado de um belo bar de madeira construído pelo nosso avô no século retrasado. Neste antigo e pesadíssimo móvel meu irmão "escondia" suas garrafas de vinho do Porto e uns pequenos cálices de cristal. A pretexto de buscar alguma coisa no salão ou escovar a mesa de sinuca, que ele tanto ama, ia lá dar as suas talagadas no vinho, como se sua mulher não soubesse. Ah, se eu pudesse dar uma boa golada nesse Porto agora, como tantas que furtei em vida...

Fiquei muito bem acomodado naquele canto, as pessoas foram chegando aos poucos, passavam, olhavam-me com alguma tristeza e logo iam se acumulando em grupos nas portas, no jardim, em torno da piscina; a criançada começando a brincar... É bem antiga a tradição na nossa família de contar anedotas nos velórios, me diverti muito, mas a maioria eu já conhecia. Foi bom também ver que quase todos falavam bem de mim. Lembrem-se disso nos próximos velórios.

A questão principal do evento passou a ser a preocupação com os comes e bebes, parece que a festa ia receber mais gente que o esperado. Todas as minhas irmãs e a maioria das cunhadas são excelentes cozinheiras, mas os homens não queriam que elas fossem cuidar de forno e fogão nessas alturas; Olinda propôs a contratação de um Buffet em caráter emergencial, mas a idéia parecia impraticável. Uma sobrinha sugeriu que se encomendasse uma boa quantidade daqueles sanduíches de metro, as crianças iam adorar. Eu achei essa possibilidade a melhor e mais conveniente pra ocasião, mas a discussão prosseguiu por um bom tempo, todos sempre consultando Osvaldo, que era o dono da casa, mas parecia ser justamente o mais indeciso.

De repente meu irmão abriu um sorriso e ficou com um brilho nos olhos, que eu já conhecia muito bem. Enfim ele decidiu o cardápio, como devem ter imaginado todos, mas eu senti que não era só isso. A gente fica onisciente depois que morre, sabiam? Osvaldo lembrou naquele instante que me devia quinze mil pratas. Há uns quatro meses ele quis aproveitar uma boa oportunidade de quitar um terreno no litoral e precisava desse dinheiro mas não queria se desfazer de umas aplicações antes do tempo, pra não perder os rendimentos. Eu tinha lá minhas economias de solteirão e lhe adiantei os quinze mil, que ele ficou de pagar no mês que vem, quando vencem algumas de suas aplicações. Ninguém mais na família sabia dessa nossa transação. A dívida ficava, assim, extinta, já que eu quebrei o contrato, morrendo sem aviso prévio.

Tudo bem, eu não ia mesmo querer quinze mil pratas agora, e também nem sei se meu irmão estava assumindo sozinho as despesas do meu velório, mas acender a churrasqueira e mandar buscar cerveja acho que foi um pouco exagerado da parte dele.