O Preço de Uma Nota de C$ 100.000,00
Seu nome era Primo, criatura de poucas letras, passara a infância e adolescência no mato, como dizia. Calçou o primeiro sapato aos 18 anos, ia à cidade somente para vender as sobras de mantimentos e carne seca, produzidos no sitio do pai. Com as patacas apuradas comprava café cru, sal grosso, querosene e outras necessidades consumidas por gente da roça.
Às vezes, já taludo, ludibriava o velho, distribuindo toucinho às raparigas em troca de safadezas. Casou com Dona Áurea, mudou para a cidade, mas nunca deixou de ser explorado pelos mais sabidos, que o engabelavam, por meio de cargos e nomeações, como juiz de paz, vaga na câmara de vereadores e outros, na época não remunerados, mas com direito a diploma e portaria publicada, além do status. Nada, porém, que lhe rendesse o suficiente para um par de chinelos.
Como homem público, não conseguiu acumular bens além de uma casa de morar. Constrangia-se ao deparar com alguém explorando gente pobre, talvez por já ter sentido na pele a crueldade da injustiça. Construiu uma das mais bem sucedidas famílias de Taguatinga, entre os filhos, contando-se médico, oficial da aeronáutica, industrial e funcionário público, que avançaram na prosperidade com os próprios esforços, pois logo cedo haviam partido para a capital de Goiás em busca de conhecimentos. O pai mesmo, pouco tinha a investir, a não ser os bons exemplos.
Humorista por natureza, conselheiro sensato nos conceitos da distribuição de rendas. Já com idade, tinha seu dinheiro, mesada recebida dos filhos, controlado por Dona Áurea. Deixado em suas mãos, não duraria um só dia, distribuído todo aos mais necessitados. Ai dele, porém, se gastasse um só centavos com besteiras! Pior se fosse com cachaça, Dona Áurea soltaria os cachorros. Daí o seu maior pavor em cometer deslizes.
Certo dia, aproveitando a ausência da esposa, escarafunchou seus guardados e encontrou uma nota de Cr$ 100.000,00 – é isso mesmo, cem mil cruzeiros, cédula recém-lançada, que circulou de março de 1985 a março de 1990, de valor aquisitivo alto – e dirigiu-se ao bar do Celso, marido de Luzia.
Celso era botequeiro caprichoso, tinha cachaça preparada com uma infinidade de raízes e frutos do mato. Não lhe faltavam fregueses, uns, com desculpas para curar resfriado, outros, impotência, alguns, dores de cotovelo e assim por diante. Na verdade, aquelas misturas só serviam para o sujeito sair zigue-zagueando na rua, com pé dentro, pé fora.
Pediu uma pinga com pimenta da serra, dizendo ser indicada para encorajar marido que tem medo da esposa, tomou, retirou do bolso a nota de cem mil cruzeiros e a jogou em cima do balcão. Num tom de poderio, pediu que fosse cobrada a cachaça. Celso, que não fazia questão por valor tão insignificante, não se justificaria trocar uma nota daquela para cobrar uma cachaça. Por isso, dispensou o pagamento.
Primo chegando em casa, colocava a nota no mesmo lugar onde a encontrara. Esta proeza astuciosa já se tornara rotina, sempre com cuidado, aproveitando entre o cochilo de Dona Áurea e as alternâncias dos garçons: Celso – Luzia – Empregada, para não causar desconfianças. A resposta era sempre a mesma: não temos troco, deixa, não precisa pagar.
Dona Áurea nunca desconfiara, achava que aqueles esbarros, que chegavam a derrubar cadeiras, era efeitos causados por cachaça paga por outro pé-de-cana. Celso e Luzia, também não.
Juntando os cinco minutos de bobeira, que cada um de nós temos, à coceira que a “danada” causa na língua do sujeito, - ela tem este domínio sobre o seu prisioneiro - fez com que o seu segredo fosse levado ao conhecimento de Rochinha, amigo que adorava colocar lenha em fogueira só para ver o circo pegar fogo. Em tom de zombaria, contou que a nota estava já amarrotada de tanto retirar e colocar novamente no bolso.
Antes de Primo dobrar a esquina, Luzia já estava sabendo de tudo...Juntou o faturamento da semana para completar o troco para a nota. Era questão de honra, desmoralizar aquele esperto na presença de fregueses.
Certo dia, no horário de sempre, entrou no seu estabelecimento “Tio Primo”, tratamento carinhoso dos mais íntimos.
- Sirva-me uma pinga, minha filha.
Como é mania de pinguço, após ingerir aquele líquido, fez gesto de quem não estava gostando, engruvinhando a face já bastante amarrotada pelos janeiros. Só deu tempo de jogar a nota em cima do balcão, antes mesmo de fazer a ladainha de sempre, Luzia avançara sobre ela e já trazia na outra mão o troco: Um maço de cédulas velhas e mais um quilo e tanto de moedas já contadas para não dar maçada no seu freguês.
De imediato, Primo ficou pasmado diante de tanto troco, mas logo entendeu o que estava acontecendo e saiu porta afora sem aumentar conversa.
Lá pelas oito horas da noite Dona Áurea teve notícia de Primo bebendo, pagando para os amigos e soltando foguetes, no boteco de Caitano.
Dias depois, diante de tantas insistências de Dona Áurea, querendo saber donde havia saído tanto dinheiro para tal farra, Primo acabou confessando que dias atrás, após beber alguns goles a mais, cometera o erro de contar o seu segrego para Rochinha, e já prevendo uma desmoralização, naquele dia deixou a nota de Cr$ 100.000,00 e levou uma nota de Cr$ 2,00.
Luzia, para não dar o braço a torcer e amenizar as gozações de seus fregueses apreciadores de derrotas, até hoje bate o pé que recebeu foi uma nota de Cr$ 100.000,00 e não uma de Cr$ 2,00.
Crônica de:
Edílson Oliveira de Souza
Taguatinga – TO.