A RABANADA QUE NÃO COMI...

Sofri durante alguns anos a síndrome do calor do Natal. Explico: Morava no Rio de Janeiro e os Natais eram passados com meus pais e irmãos. Já adulta, o costume foi preservado. Mudei-me para lugares de climas bem mais amenos, mas jamais consegui que meus pais viessem passar a data comigo. Perdia o sono alguns dias antes, sofrendo por antecipação um calor que aumentava com o consumo frenético de calorias... Minha mãe suava de dar dó, mas ninguém botava a mão no seu peru... não... ela fazia o bicho ficar bem estufado de farofa cheia de bacon...salivo só de pensar... Bem, num desses Natais ( meu pai já havia falecido e ela já estava perto dos 80 anos), despedi-me dela observando pela primeira vez que estava com a fisionomia cansada, mas durona que era, ai de mim se fizesse tal observação.

Ao chegar em casa (já residia em Teresópolis), atendi a uma ligação. Era uma voz feminina, aos prantos:

- Mãe, aconteceu, mãe, a vovó...

Minha filha havia ficado com ela e imediatamente percebi que algo muito grave havia acontecido...A ligação caiu e eu, trêmula e já aos prantos, lembrei-me como aquele peru era enorme... coitada, ela puxando o peru para fora do forno, naquele calor, espetando e virando o bicho... Ela morrera de exaustão e a culpa era minha... Tentei me controlar e completei a ligação.

- Minha filha, pelo amor de Deus, tem certeza, como foi, ela caiu na cozinha, tem certeza, vê o pulso, ela está fria...

- Que que você tem minha filha?

- Mãe, a senhora tá viva?

- Bem, a não ser que defunto agora já consiga falar no telefone... mas foi bom ver como você vai chorar no meu enterro...por falar nisso você esqueceu o prato de rabanadas...

Respirei fundo, aliviada, percebendo o engano...

Rimos muito, passamos ainda alguns Natais juntas, e jamais imaginaria que um dia sentiria saudade daquele calor...

Belinda Tiengo
Enviado por Belinda Tiengo em 15/12/2008
Reeditado em 27/01/2010
Código do texto: T1336774
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