o que é o prazer?
Tarde de quarta feira, movimento na rua comercial quase parado, casa de calçados às moscas, vendedor bocejando, entra um cidadão de olhar absorto, olheiras profundas, movimentos vagarosos, ombros arqueados para a frente como um titã que carregasse o mundo e seus problemas. Ainda nôvo, 40/45 anos, mas uma aura gasta. Submissamente envergonhado pede ao atendente um par de sapatos. Preto, sola de couro, de amarrar, cabedal alto, número 38, bico largo. Pode embrulhar, nem precisa abrir a caixa. Pagamento em dinheiro.
Talvez fôsse a experiência, talvez a angústia que emanava daquele homem, talvez a necessidade de se comunicar, alguma coisa meio inexplicável fêz o vendedor observar os pés daquele homem e dizer:-
Cavalheiro, posso notar que o senhor deve usar calçados de numero 40! É um embrulho para presente? Não, murmura o homem, é para mim mesmo. Volta a insistir o vendedor:- Mas o senhor calça 40. dê-me uma explicação plausível e dou-lhe os sapatos. Nem cobro por êles. O homem então, com uma voz saída das profundezas da miséria humana contida em sua alma, explica:-
Senhor, sou casado há 22 anos e minha mulher me corneia desde o noivado. Minha filha mais velha, 20 anos, é garota de programa, meu outro filho,18 anos é uma bicha assumida e escandalosa, motivo de vergonha no bairro, meu único patrão, patrão desde a adolescência me trata como um burro de carga, paga um salário ridículo, acho que é mais um dos que traçam minha mulher, me obriga a trabalhar em pé na portaria da empresa o dia todo. Esses sapatos vão deformando meus dedos até parecerem garras de ave de rapina. Meu único prazer é, à noite, descalçá-los. AAAAAAhhhhhhhhhh!
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