POLENTEIRO, O JORNAL DO SEU BANHEIRO
Devo começar este texto assim: “Existiram, certa vez, imigrantes italianos, chegados ao Brasil no início da segunda metade do século XIX, à partir de 1874, indo morar na região do Campo dos Bugres, na Serra Geral, a nordeste do Estado do Rio Grande do Sul, um solo rochoso, de fina camada de terra sobre o basalto abundante. Quase sem o que plantar em terra tão rala, passaram a cultivar o milho, cuja planta possui raiz curta, que retira os nutrientes praticamente na superfície. Do milho faziam as farinhas grossa, média e fina. Da farinha grossa faziam a polenta, um angu cozido em água e sal, mexido com colher de pau. Comida na hora, frita, com leite ou acompanhada de alguma outra iguaria, a polenta tornou-se prato predominante da culinária ítalo-brasileira, confundindo-se mais tarde com os pratos típicos do Estado. Por esta razão, os ítalo-brasileiros gaúchos ficaram conhecidos entre os por aqui como polenteiros, sendo esta a designação atribuída ao comedor de polenta”.
Durante os anos de 1988 e 1992 morei em Caxias do Sul, próspera cidade da região Nordeste do Rio Grande do Sul, cujo centro está na colina central do antigo Campo dos Bugres. Com mais de quatrocentos mil habitantes, a cidade de largas avenidas domina vasta região de colonização italiana, onde o cultivo da uva e produção vinícola dominou a economia por muitas décadas.
Em novembro do ano de 1990, após seis meses da profunda recessão causada pelo Plano Collor I, fui demitido da melhor agência de propaganda que trabalhei, a Propequipe Propaganda, então a segunda maior da Região Nordeste do Estado e maior com sede própria. Antes de primeiro de Janeiro de 1991, quando embarcaria para a cidade do Porto, em Portugal, onde tinha arranjado trabalho, entrei de sócio de uma pequena agência de propaganda em Caxias do Sul, a Lampert, e quando inauguraram a Festa da Uva daquele ano lá estávamos com nossas credenciais distribuindo O Polenteiro.
Nas últimas semanas antes do lançamento, as pessoas perguntavam pelas ruas da cidade o que seria o tal O Polenteiro, sobre cujo lançamento se ouviam uns comerciais esquisitos no rádio.
Conheci o Toni Lampert, dono da Espert Propaganda, por indicação da Adriane Corrêa, minha colega, diretora de produção na Proequipe. Em vista de eu ter sido demitido, ela tinha entrado em contato com alguns ex-colegas na Cidade do Porto, como me arranjara trabalho em Portugal. Sendo que faltava um mês para embarcar, precisava trabalhar para reforçar o dinheiro da viagem, então fui trabalhar com o Toni por indicação da Adriane.
Enquanto fazia a edição do mês do Jornaleco, um jornal de mesa que a Espert publicava, numa conversa sobre jornais e revistas que sonhávamos editar, Toni me convidou para sermos sócios e transformarmos o Jornaleco, que era uma toalha de mesa de piadas, curiosidades e pequenos anúncios, num jornal de humor de dezesseis ou mais páginas, como fora o Planeta Diário e o Pasquim, porém com anúncios sérios pagos.
Entusiasmados, começamos a planejar o jornal, determinando que a comercialização e distribuição ficariam a encargo do Toni, com a colaboração do Paulo Pitágoras. Eu cuidaria da redação e produção, sendo que da divulgação do jornal, bem como da redação dos anúncios, cuidaríamos em conjunto. O Toni indicou a Marliva para ser a jornalista responsável e também editora. Idealizei que nos primeiros meses o jornal seria distribuído com carimbo de cortesia na capa, apesar do preço de capa, e seria dado pelos jornaleiros como brinde a todo que adquirisse um exemplar de Zero Hora, Pioneiro, revista Veja e outras publicações importantes. Imitando o plano de marketing de relançamento do jornal Correio do Povo na segunda metade da década anterior, pretendia viciar o leitor em bom-humor para depois cobrar os exemplares nas bancas. Tendo muita saída nas bancas, seria muito fácil comercializar os anúncios, que seriam sempre mais valorizados. Assim consolidaríamos uma boa receita.
Inicialmente pensamos em pôr nome de “Piolheiro”, complementando com o slogam “O Jornal do Seu Banheiro”, pois esta era uma expressão corrente entre a população caxiense, uma alusão depreciativa ao jornal Pioneiro. Entretanto, orientados juridicamente, decidimos não começar com provocações. Optamos pelo nome O Polenteiro, que, além de soar parecido com Pioneiro, era próprio da colônia ítalo-brasileira e, em vez de ofender, despertaria o orgulho dos descendentes de italianos, bem como das populações de outras etnias. Com esse nome poderia ser distribuído também da Serra à Capital do Estado, identificando-se um pouco com descendentes de alemães e mestiços em geral, pois o gosto pela polenta está disseminada entre várias etnias.
E, para atrair simpatia geral, reforçando ainda mais a aceitação, convidaríamos outros profissionais da área de comunicação caxiense para colaborar. O Corrêa, pai da Adriane e colunista do Jornal Folha de Hoje, concordou em fazer uma coluna humorística em nosso jornal. Quanto ao Iotti, pensei que após a primeira edição aceitaria o convite. Mas, apesar de ter feito o novo convite com o jornal na mão, ele nem fez caso, demonstrando que sequer tomara conhecimento da publicação. A Deni e o Eron, locutores da rádio Stúdio FM, nunca tiveram tempo para receber-nos. Apesar disso, os quatro mil exemplares da primeira edição dedicados à Festa da Uva esgotaram ainda no primeiro dia, sendo que das bancas recolheu-se pouco mais de uma centena de exemplares quando da distribuição da segunda edição.
Com a manchete principal, “Na Verdade a Festa da Uva é Massa”, a primeira edição de O Polenteiro foi lançada no primeiro dia da Festa da Uva de 1991, com o apoio do Wanderlei Kucharski, então vendedor do Candeias, que usou sua Variante II para distribuir, a exemplo do Paulinho, que usou seu Fiat 147. No dia também contamos com o apoio da Marliva, além de muitos outros colaboradores.
Eu e o Toni tínhamos acertado que após fechar a comercialização ele podia viajar em férias com a família, pois, do contrário, perderiam os últimos dias bons de praia da temporada. Há mais de quinze dias ele tinha viajado, por isto não estava para o lançamento de O Polenteiro, que foi um sucesso, recebendo muitos elogios, inclusive de pessoas de outros estados, bem como grande repercussão na cidade e também fora dela.
Após retornar de suas férias, ainda no forte da repercussão do lançamento, Toni comercializou os anúncios e distribuiu a segunda edição, colocando em bancas também nas cidades de Flores da Cunha, Farroupilha, Bento Gonçalves, Nova Petrópolis, São Leopoldo e Porto Alegre. Retornou, porém, insatisfeito, porque os donos das bancas não lhe pagaram a venda da primeira edição. Expliquei-lhe que tinha distribuído tudo com carimbo de cortesia, como fora determinado em nosso plano de marketing. Ele esclareceu, porém, que não tinha entendido que seria assim e, diante desse argumento, não argumentei, apenas assenti que da segunda edição em diante não seria carimbado de cortesia, lembrando somente, mas sem muita ênfase, que a circulação cairia muito e a comercialização se tornaria difícil.
Fizemos outras oito edições, satirizando sobre os presidentes Collor e Busch pai, a guerra do Golfo, a corrupção do ministro Antônio Magri e os anões do orçamento, o surpreendente caso amoroso entre a ministra Zélia e o ministro Cabral, a origem da cueca, a vinda dos italianos para o Brasil, o surgimento das brigadianas, os chucrutes, a primeira festa da Imigração Alemã em São Leopoldo, a poluição de rios e arroios, os poderes políticos de Caxias do Sul e tudo o mais. Para ilustrar a matéria sobre o surgimento da cueca, desenhei um italiano vestindo um barril com suspensório, alusão à primitiva cueca de madeira, cuja utilidade era ampliada por um canudinho com o qual o usuário sorvia o vinho do barril enquanto andava, sendo que o vinho no fundo do barril também servia para refrescar “as coisas”. Não sei se por coincidência, nos meses seguintes passou a veicular na televisão um comercial de loja de vestuário onde aparecia um homem vestido de pipa com suspensório.
Para fazer sátira sobre a Guerra do Golfo, onde se lançavam muitos mísseis skuds, inventei uma história onde pus os italianos na guerra. Em uma matéria, eles lançavam desde a Itália os mísseis escudiguim, produzido à partir de um prato típico muito apreciado pelos italianos. Claro, esclarecia a matéria, os mísseis escudiguim somente eram lançados após saboreados, sendo que os próprios italianos serviam de base de lançamento. Para tanto, curvavam-se com o rosto em terra, tendo as nádegas voltadas para o Iraque. No impacto, os mísseis escudiguim já punham os iraquianos para dormir.
Dias depois de circular a edição dos mísseis, o Iotti fez uma charge no jornal Folha de Hoje na qual o Radicci vivia um episódio com o típico prato escudiguim.
À partir da edição de número sete, por idéia do Toni, criamos um caderno histórico, para publicar a história de Caxias bairro a bairro, mas sem humorismo. Com o pensamento de que o humor do jornal já estava desgastado, sua idéia era puxar o interesse dos leitores pela vaidade, produzindo argumentos mais convincentes para a venda de anúncios. Eu não concordava com isso, sendo que sabia porque a circulação enfraquecia. Todavia, tinha muita vocação para a história, sendo uma das coisas que eu mais gostava. Por isto concordei, satisfeito até porque seria eu quem identificaria as fontes, faria as investigações e entrevistas e tiraria as fotos.
Começaríamos pelo bairro São Pelegrino, onde entrevistei em primeiro lugar a doutor Postali, dentista prático aposentado, que tinha mais de oitenta anos e um sótão cheio de equipamentos dentários do tempo em que ele era menino e ajudava o pai no consultório tocando o pedal da broca. Sua casa estava na Esquina da avenida Rio Branco com a avenida Júlio de Castilhos.
Na entrevista, ele contou-me sobre o senhor Luiz e a dona Anaide Andreazza, de cujo casamento ele fora padrinho, recebendo um martelinho de prata com o qual quebraria o pequeno vidro na porta que lacrava a adega onde fora estocado o vinho para as bodas de prata.
Coincidentemente, a Graziela Sanvito Andreazza, filha do doutor, oftalmologista, Eli José Andreazza, era neta de dona Anaide e colaboradora do jornal. Ela fazia tirinhas quando vinha nos finais de semana de Porto Alegre, onde cursava Direito na PUC. Entretanto, não sabia que ela tinha parentes tão importantes, como Mário Andreazza, seu tio, que foi ministro dos Transportes dos Governos Costa e Silva e Médici. Graziela sempre foi uma grande amiga, bastante solidária em tudo. Para minha surpresa, seu pai me agradeceu certa vez por eu proporcionar a ela a oportunidade de fazer as tirinhas humorísticas, pois, acrescentou que ela gostava muito de fazer.
Outra colaboradora muito importante, que será sempre muito bem lembrada, trata-se de Jaqueline Concer, agora diretora da Ford Model Sul, quem na verdade nos apresentou a Graziela. Ela fazia estágio de jornalista em O Polenteiro e tinha um grande senso humorístico ajudando muito na criação das matérias, bem como na revisão de tudo, sendo também uma das melhores amigas que tive.
Por esse tempo procurei o Arquivo Municipal, contatando com a diretora do museu que me solicitou a doação de todos os exemplares para a entidade. Na oportunidade em que levei a doação, ela me mostrou alguns exemplares de um jornal de humor que circulara pela cidade em 1914. Este fora o último antes de O Polenteiro.
Por aqueles mesmo dias visitei a senhora Anaide, na casa do lote que tinha sido o de número treze da Rua Pinheiro Machado, sobre o empório de nome Comércio de Tecidos e Ferragem Luiz Andreazza Ltda, a loja que seu marido fundara antes de casarem. Então com noventa e dois anos, dona Anaide mostrou-me a adega construída antes do casamento para depósito do vinho das bodas, também o vidro, então restaurado, por cujo vão vinte e cinco anos após o matrimônio o doutor Postali tinha posto o braço para abrir a porta. Na adega havia um livro de visitas assinado também por muitas celebridades. No meio da escada de acesso aos cômodos superiores da casa ela mostrou-me um quadrinho contendo uma foto onde ela estava com menos de quatro anos, sentada no colo de Maria Paternoster, então com quarenta anos, no início do século XX, por volta do tempo em que morreu. Maria era uma personagem muito interessante do início do bairro e sobre ela eu já estava fazendo investigações, que merece um texto à parte, coma as histórias da dona Anaide e do doutor Postali.
A próxima edição publiquei o levantamento que tinha feito do bairro Rio Branco, onde entrevistei duas netas de Feijó Júnior, personagem que deu nome a uma das ruas da cidade. Ele fora o incumbido pelo presidente da Província de São Pedro, João Sertório, seu sócio em um empreendimento madeireiro, de conduzir e estabelecer os imigrantes italianos na região do Campo dos Bugres. Para tal ganhou como pagamento uma sesmaria, um pedaço de terra que vai desde a cidade de Farroupilha, até as pirambeiras do bairro Rio Branco em Caxias.
Na nona edição, o nome do jornal passou para Jornal de Bordo, tornando-se de curiosidades, reduzindo o humor para as duas páginas centrais, seguindo, porém, com o levantamento histórico. Na capa publicamos uma foto da nossa secretária sobreposta a uma composição das capas de todas as edições, produzida no estúdio do fotógrafo de moda do Júlio Cocoliccio.
Na décima edição, já alusiva ao Natal, publicamos na capa uma ilustração, cuja autora não recordo mais o nome, tendo uma árvore de Natal decorada com os brasileiros enforcados e o presidente Collor ao lado, brindando com a esposa Rosane. Nesse tempo o jornal já deixara de ser humorístico, perdendo completamente as características e a graça, bem como o nome O Polenteiro, que na edição de número nove fora posto menor abaixo do novo nome.
No início de janeiro de 2002, deixei a sociedade, indo morar em Porto Alegre, começando a trabalhar tempos depois em uma pequena agência de propaganda na esquina da avenida Benjamim Constant com a rua Ernesto da Fontoura.
Redigi este texto da memória. Os assuntos aqui contidos estão mais exatos e melhor detalhados nas cópias originais do jornal O Polenteiro no Arquivo Municipal de Caxias do Sul.