Cucaracha

Noite.

A passos pesados venço as portas de meu regaço, exaurido.

Um toque, luzes!

Havia placidez naquele recinto, não fosse o tilintar de dois pequenos fios negros, brilhantes que revolviam sobre um móvel da sala de estar.

Ao perceber minha aproximação, frenéticas se agitavam, procurando um canto, uma fresta... foi inútil. Estava identificada sua presença, suas negras e filiformes antenas, sua casca de um brilho artístico, quase escultural. Temeu.

Trocamos alguns olhares, não muitos. Tentava ignorar minha presença, talvez na esperança de não ser notada. Notei.

Sim, notei. Muito mais que uma praga degustando um resto qualquer sobre minha poltrona de sábado, que tantas histórias guardava... notei uma invasão à minha privacidade, uma ousadia descomunal por parte daquele ser de não mais que poucos centímetros.

O cenário outrora plácido de minha sala de estar tornava-se - dentro de mim - como de uma investida dos soldados alemães organizados por Hitler.

Sentia o fervor do meu sangue, a adrenalina fluindo no pulsar de meu coração.

Tomado pelo ódio, ardendo em uma fúria incontrolável, me lancei sobre o outrora tão prezado móvel.

A pequena vilã esquivava-se com uma agilidade tri-atlética, como fora laboratorialmente programada para me vencer. Não desisti.

Usando de uma flexibilidade contorcionística, escapava minha rival por entre os entalhes de meu sofá.

O suor pingava de minha fronte, estava completamente fora de mim. Já não podia voltar atrás. Havia ido longe demais. Ultrapassado as fronteiras da sanidade.

Com a determinação de um louva-deus, que não desiste da penetração mesmo cônscio de que terá sua cabeça devorada poucos segundos depois, despendi sobre o supracitado móvel toda a ira contida durante cada decepção amorosa, cada noite em claro, cada momento de frustração. Estava ali o homem disseminando sua raiva, a plenitude de sua testosterona.

Ódio, luta, por fim, fatiga...

Caía ela no chão, cansada de tão desgastante labuta.

Estava viva, contudo, não se movia.

Confesso que, nesse ínterim, criamos uma laço, uma certa interdependência, como nos grandes heróis e seus rivais.

Talvez ela tenha compreendido esse meu sentimento, pois, por um momento, moveu-se em minha direção, acreditando no raiar de minha misericórdia. Errou. Foi morta por uma chinelada.

Krummel
Enviado por Krummel em 11/10/2008
Reeditado em 02/07/2010
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