SOBRE ONTEM A NOITE II
Do livro Castelo de guardanapos
A única sensação que eu tinha naquela noite era de frio. Ouvi barulhos vindos da cozinha. Sou macho, nascido em Uruguaiana, não tenho medo de bandido, muito menos de cara feia. Na verdade é quase isso. Fui de passo miúdo, silente, levemente borrado. A porta de correr estava entreaberta. As coisas da cozinha estavam reunidas debatendo a condição de vida atual, com ênfase na situação econômica.
A palavra estava com a margarina, meio mole e bocejante, dizendo que a única alegria dos últimos dias era o frio, uma vez que o verão era o caos para ela que sempre ficava fora da geladeira. Passava a noite na mesa e de manhã ainda era xingada pelos donos da casa que não tinham nem o cuidado de limpar a tampa do seu pote, que caia no chão sempre virada, todos sabem com que lado para baixo. Isso quando não era obrigada a acasalar-se com uma embalagem plástica, que insistiam em chamar de manteigueira, de péssimo gosto e qualidade duvidosa. Era usada para tudo e isso a punha maluca, para fritar, untar (com os dedos!) e, o cúmulo do desvio de função: até em dobradiças de porta, imaginem! Sua tarefa mais suave ainda era as torradas, mas ser esfregada num pão de avançada idade e conviver com o padrão dos queijos e frios atuais, não lhe davam mais prazer.
O bate-boca ficou encardido. O pão, ofendido, pediu respeito e fez vigoroso discurso sobre o preconceito com os velhos. Era inaceitável o posicionamento de uma parceira de tanto tempo, logo com ele, ícone da luta contra a fome, referencial nas preces e na simbologia do trabalhador. Não, não. Preferia virar torrada de forno, papinha para o papagaio e até mofar a contracenar com aquela ingrata. O queijo também protestou. Quem era ela, a margarina, que nem manteiga era, para exigir parceria mais qualificada? !”Soja, é sim, um produto nobre, o país ganha muito com essa matéria-prima” - esbravejou. Aproveitou o ensejo para que fizesse constar da ata a inconformidade com a sua utilização na cobertura das lasanhas e pizzas. Era desgaste puro, ele não iria derreter-se com um calorzinho qualquer e ainda seria chamado de vagabundo. “Cada um na sua, protestou, eles que comprem mussarela!” O presunto não pode falar nada, não conseguiu juntar todos os retalhos para se posicionar.
Havia uma discussão paralela entre dois companheiros quase siameses, embora de individualidades marcantes: O café e o leite. Um acusava o outro de fraco. O café queixava-se lembrando do tempo em que seu parceiro, estrangeiro e consistente, reinava pela cozinha, dentro ou fora da geladeira, com fama de ter longa vida. Hoje não passava de um saco que nem parava em pé, necessitando passar por teste de fogo para ser aprovado e mesmo assim, oferecer baixa consistência. O leite suava, quase comprovando a tese do oponente sobre as suas misturas aquosas, mas furioso, reclamou do café, lembrando-o que mesmo quando coado não era tão atrevido. É ele leite, que apesar das vacas magras, ainda abranda a gastrite do dono da casa, agredida pelo café; é ele que, mesmo debilitado, ainda fornece cálcio e fósforo para as crianças da casa que não comem nada; é ele leite, por fim, que ajuda na economia, pois é totalmente aproveitado mesmo depois de azedo quando, paradoxalmente, e para inveja de muitos, vira doce. Salvo quando alguém desastrado (engoli em seco) o deixava ferver até derramar. “E fraco és tu, que quase nem embalagem tem mais, vindo num saquinho ridículo de papel e que sem a minha parceria, até transparente fica”. O leite quase fervia de brabo. No fim deram-se as costas, o café engraçou-se com uma chaleira d’água e o leite com um pote de sucrilhos. Bicha! Ainda ouvi o café dizer.
Outra pequena rusga acontecia entre adoçante e açúcar, mas era coisa leve, tipo: “Gordo! Bandido!”. Dizia o adoçante, lembrando da saúde dos adultos e que era o queridinho da dona da casa. E o contraponto: Magrela! Seco! Gritava o açúcar, lembrando das calorias que emprestava às crianças, das tantas festas que patrocinava, inclusive jogando na cara do oponente as frustradas tentativas que tiveram todos os que se arriscaram a fazer a mais prosaica sobremesa com adoçante. “Não-fede-nem-cheira!” - divertia-se. Soberbo, o requeijão nada falava. Estava acima daquelas discussões proletárias. Talvez temesse ser notado e encarado como supérfluo . A geléia estava quieta, não havia sido citada, até ser solicitada a opinar, quando saiu-se em favor da manteiga, preferindo chama-la assim, pedindo, por sua vez, para não ser chamada de chimia. Disse que não queria ser preconceituosa, mas que pão velho não dava tesão, e aproveitava para protestar contra os maus hábitos da casa que, na falta de sobremesa, enfiavam-lhe colheres de diversas bitolas. Dava graças a Deus quando não eram os dedos. O menino da casa enfiava os quatro, sabe-se lá se lavados, no mínimo duas vezes! Um nojo.
Notei num cantinho da mesa o mel. Quieto, cabisbaixo. Vez por outra levantava a cabeça sorrateiro, sempre olhando com o rabo dos olhos, desconfiado. “Falso!” – resmunguei revoltado, lembrando de uma suposta asinha de abelha que o feirante retirou do pote quando me vendeu.
Sob vaia e reclamação dos talheres que queriam dormir, todos se aquietaram. Eu não sei em que horas nem como me recolhi. Sei que no outro dia passei reto pela cozinha. Nem olhei as horas.