Dôssie de uma castração - Pela ótica de uma veterinária
Não faz muito tempo, mas eu ainda me lembro bem. Uma amiga me mostrou um conto que escreveu, onde narrava de forma bem humorada a castração de seu gato, pela ótica do proprietário, com os altos e baixos que um amoroso dono sofre ao deixar seu bichinho nas mãos de um estranho para fazer “aquela” cirurgia, que a maioria dos homens treme só da gente dizer o nome.
É sério, gente! Toda vez que eu falo em “castração” para um indivíduo do sexo masculino, o infeliz me olha como se eu fosse uma doida, uma depravada, uma agente da inquisição, uma nazista sem coração. Ou, como eu prefiro pensar, uma feminista sem escrúpulos, capaz de eliminar todos os machos da face da Terra, com requintes de sadismo! Cá entre nós, quando isso acontece, eu sempre me sinto a própria Lorenna Bobbit (para quem não lembra, esta senhora norte-americana cortou fora o “aquilo” do marido, com uma faca de cozinha, e jogou fora no acostamento de uma estrada). É isso mesmo. De médica e amiga nas horas de infortúnio, passo em um instante a ter pro cliente o status de “Rainha das Facas Ginsu”. Mais de uma vez me deu até vontade de escrever um livro intitulado: “O.K., eu cortei fora. E agora, o que eu faço com isso?”.
Para quem não conhece o drama, eu vou explicar a rotina que eu tenho antes desta delicada cirurgia, para que possam entender a coisa do meu ponto de vista.
Geralmente, tudo começa com um telefonema, no início ou no fim do expediente, onde o proprietário reclama que o seu gatinho, antes tão higiênico e bonzinho, começou a mijar por todos os cantos possíveis e imagináveis da casa, além de sumir e voltar todo arrebentado quando vai dar seus passeios por aí. Não come direito, emagrece a olhos vistos, mia como se estivesse sendo esfolado vivo e outros sintomas variáveis. Daí, lá vou eu, da forma mais digna possível, explicar que o “gatinho” entrou na adolescência e quer mais é rosetar! Imaginaram a cena? Ah, mas ainda não acabou. Sigam a minha linha de pensamento: imaginem que eu estou falando isso para uma pessoa de idade. Deu? Agora, imaginem que a pessoa de idade em questão é um daqueles machões, que só de ouvirem a frase “o ideal é castrar o bichinho”, se encolhe como se ele fosse pra faca. Sentiram o drama, não? Se for uma mulher que liga, a coisa mais simples, pois elas sempre vão preferir um capado vivo a um inteiro morto. Mas nada no mundo é perfeito. Se quem faz essa ligação é do sexo masculino, a coisa muda de figura. Você pode não acreditar, mas nove entre dez homens batem o telefone na minha cara, como se fossem eles que fossem ser castrados. Se bem, que alguns mereceriam (brincadeirinha!).
Passam-se alguns dias. O “gatinho”, provavelmente, já mijou na TV, computador e sei lá mais no quê, gerando um senhor prejuízo pro cidadão, que havia sido muito bem avisado que isto poderia acontecer. Então, o proprietário liga novamente, convencido que ou se livra do gato, ou manda capar ele senão a coisa vai ficar cada vez pior.
É marcado o grande dia. O dono, quando é homem, começa a tremer só de pensar o que eu vou fazer assim que ele deixar seu gato, se despedir de mim e eu fechar a porta. Mas não importa o sexo no quesito seguinte. Uma pequena folha, com um texto e uma linha pontilhada. Não importa se é homem ou mulher. O cliente sempre sai nervoso e, muitas vezes, irritado por ter tido que assinar o termo de responsabilidade, onde eu deixo bem claro que ele estava ciente dos riscos que a anestesia pode oferecer. C’est la vie, mes amis. E eu vou ser burra de deixar uma bola dessas quicando? Sonha!
De volta ao consultório, começa a via crucis. Como eu sei que nenhum proprietário realmente deixa o seu bicho em jejum, por mais que diga que deixou, costumo pedir para eles levarem o futuro capado pela manhã e entrega-lo sem as jóias da família no dia seguinte, já acordado e lindo, lépido e furioso, pois nunca vai esquecer que fui eu a desgraçada que o transformou de um orgulhoso barítono em uma humilhada soprano. Ponho o bicho na gaiola, deixo de jejum e, à noite, me entrego à ingrata tarefa de tirar algo que ele não ia querer abrir mão de jeito nenhum, se sua opinião fosse pedida em algum momento desse acordo sinistro feito por dois humanos.
Ok. Eu fechei o consultório. Chegou a hora da anestesia. É aí que começa mesmo a festa. De modo geral, todos os gatos que já castrei (incluindo o meu!) lutaram bravamente por sua masculinidade. Cravada a agulha e injetado o coquetel que vai mandar ele pro país dos sonhos, de onde voltará sem algumas coisas, lá fico eu. Mijada, arranhada, mordida (já que focinheira pra gatos é tão inútil quanto dar partida em carro sem combustível) e profundamente deprimida. O “gatinho” pra quem eu dei o primeiro vermífugo, que eu vacinei, cocei as orelhas e me via como amiga, na maioria das vezes, me deixou num estado tão deplorável que parece que eu acabei de sair dum clube sadomaso! Mas isso passa enquanto eu tomo um banho rápido e faço os curativos. Afinal, eu sou profissional, não uma manteiga derretida.
Enfim, depois do banho tomado e da roupa trocada, chega a malfadada hora. O “coitado” tá ali, em cima da mesa de cirurgia. Vulnerável, amarradinho na calha, prontinho, babando, com um soro na pata, de barriga pra cima e com suas “azeitonas” prontas para serem tiradas fora. Confesso que nas dez primeiras vezes, me senti uma torturadora medieval. Uma sádica. Mas depois de várias mijadas na cara, mordidas bem dolorosas e uma variedade sem fim de arranhões, eu passei a encarar esse momento como a hora da vingança. Eu queria fazer tudo bem direitinho, com calma, pra que o pobrezinho não sofresse e ele me mija, me morde e as deixa minhas mãos e braços feito uma esteira? Acabou a depressão! Eu boto as luvas, pego o bisturi e vou capar o gato ingrato!
E começa o processo. É rápido. Menos de quinze minutos. E eles nem sentem nada. Estão tão pra lá de Bagdá com a anestesia que não imaginam a transformação que vai acontecer na sua vidinha. Findado o momento de vingança pessoal (especialmente se os arranhões foram fundos, levei uma mordida feia ou a mijada foi dada com a precisão de um atirador de elite, bem no meio dos olhos), vem um novo momento de depressão. É a hora trocar as luvas, fazer o curativo e botar o bichano (em breve com um timbre vocal em falsete) na caixinha, já forrada de jornal e com aquecimento pra ele não encarangar de frio. Feito isso, eu limpo o local e vou pra minha sala, com o paciente na caixa, pra esperar que ele acorde. E isso pode levar um tempo. Um bom tempo, especialmente se eu já estou cansada.
Como eu faço essas cirurgias à noite, não é incomum que eu, trêbada de tanto sono, tenha que me esforçar pra não cochilar. Ainda bem que existe o computador. O tempo anda a passo de tartaruga, e eu fico roendo unhas, enquanto jogo free cell, entro na net ou faço sei lá o que, só esperando que, de um momento pra outro, o ex-machão acorde, vesgo e tonto, e dê a maior mijada da sua vida nos jornais, antes de tentar me arranhar de novo e eu possa finalmente ir dormir tranqüila, depois de mais um banho, para relaxar a musculatura tensa do longo dia.
Mas o day afther é ainda pior, por incrível que pareça.
Eu acordo, sigo a rotina da manhã (banho, café, roupa, etc) e vou ver o “gatinho”, cheia de boa vontade, morrendo de preocupação. O que acontece? Me deparo com um hulk em miniatura. Com um gato louco pra arrancar meus olhos, provavelmente mijado de novo. E lá vou eu, limpar o meu novo inimigo, fazer curativo e botar água, comida e a caixa de areia, o que geralmente acalma os ânimos um pouco.
O final desse drama só se dá quando o dono, cheio de remorsos, vem buscar seu bichano do que julga ser a “maior das humilhações”. Nessa hora, se eu estou machucada, eles dão um sorrisinho cretino e orgulhoso, só pelo prazer de ouvir “é, foi o teu gato!” Se a mordida foi feia, os arranhões profundos ou eu levei uma mijada de precisão, eu tenho vontade de socar as fuças do indivíduo, mas, como eu dependo disso pra viver, eu acabo tendo paciência de santa e sorrindo feito uma gueixa. Afinal, eu tenho sete gatos e uma cachorra pra sustentar, além de mim mesma. Está na hora de ser paga pelo serviço que fiz, não de bancar a orgulhosa. Eu pego o cheque (ou dinheiro, o que vier) dou a receita a ser seguida e mando o ex-barítono pra casa, miando em falsete.
E depois disso tudo, enquanto dou baixa na ficha, eu fico pensando: se eu soubesse que ia passar todo fim de semana assim, será que eu tinha escolhido essa profissão? Talvez não. Mas, antes que eu tenha tempo pra pensar nas opções de carreira, o telefone toca de novo e inicia o ciclo novamente.
Em resumo? VETERINÁRIO TAMBÉM SOFRE, GENTE! Mas como quem corre por querer não cansa, quem sou eu pra ficar reclamando...