TÁBATA, A INFIEL...

Recebemos a notícia quando estávamos viajando. O sítio que representava naquele momento a esperança de fuga da violência no Rio, havia sido arrombado na nossa ausência. O caseiro, sóbrio somente até o entardecer, nada ouvira. O interior da casa principal parecia ter sido invadido por um tornado. Todas as gavetas reviradas, roupas pelo chão, livros destruídos... Na cozinha, além do caos, um estranho cenário: uma caixa de ovos aberta; nela uma dúzia de ovos vazios com as cascas cuidadosamente furadas, todos eles indicando que serviram de recipientes para uma nauseante "gemada"de rum...

Desolados, procurávamos o que nos era caro - um anel de formatura (presente do pai já falecido), nossos discos de vinil, fotos de família...

Nesse momento, como se fosse tomada por um raio, lembrei-me da espingarda belga do João Carlos, calibre 22, arma não só antiga mas rara que havia pertencido ao seu pai e muito provavelmente ao seu avô.

Na época eu trabalhava na Orquestra Sinfônica Brasileira e era secretária do Coordenador Geral, o brilhante João Carlos de quem sou amiga até hoje. Explico o estranho empréstimo daquela arma: um mês antes, tínhamos recebido sua visita e numa brincadeira consegui acertar e apagar uma vela atirando com uma espingarda de chumbinho. Ao ver minha façanha e meu ar "blasé" depois do tiro, não percebeu tratar-se de sorte, julgando-me exímia atiradora e merecedora de desfrutar daquela "jóia".

Assim, teria que, no dia seguinte, entrar na sala dele, dizer "bom dia"e comunicar que seus filhos não herdariam mais a espingarda. Treinei na frente do espelho... poderia argumentar que havia entrado para uma comunidade e que ao tomar um chá de ervas desconhecidas, entrei em transe e entreguei a espingarda para que fosse queimada num ritual de purificação...

Sentei-me no chão. Era o retrato da impotência. Só então, lembrei-me de Tábata, a cachorra que herdamos com a compra do sítio... Estranho, não estava - como de hábito - a nos esperar no portão. Fui a sua procura... Dei a volta na casa, examinei a garagem, o canil... até que tive a sensação de estar sendo observada... Aproximei-me de um arbusto sentindo sua respiração ofegante... Tábata olhava para uma embalagem de requeijão vazia, alternando o olhar para o infinito, fingindo não perceber minha presença... Depois, deitou-se no chão cobrindo a cabeça com as patas e começou a chorar... Entendi que havia sido subornada por um bocado de requeijão... por isso deixou que os assaltantes trabalhassem calmamente... Teve na hora o meu perdão... entendo bem essas fraquezas da gula...

Bem, quanto a espingarda, contei ao João Carlos a verdade nua e crua... Bem sei o quanto lastimou a perda, mas reagiu como sábio que é... vão-se as espingardas, ficam os amigos...

Belinda Tiengo
Enviado por Belinda Tiengo em 16/09/2008
Reeditado em 16/09/2008
Código do texto: T1180372
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