Tiros em Calouros

“Na hora de ir para o trabalho, um lenhador dá por falta do machado. Observa seu vizinho: tem o aspecto típico de um ladrão de machados, o olhar, os gestos e o modo de falar de um ladrão de machados. Mas o senhor encontra sua ferramenta, que estava caída por ali. E quando torna a observar o seu vizinho, constata que não se parece nem um pouco com um ladrão de machados, nem no olhar, nem nos gestos, nem no modo de falar.”

- Antiga história chinesa.

***

Primeiro dia na faculdade. Rostos estranhos, olhos apressados piscando rápido de tão ansiosos, bocas falando do tradicional e iminente trote, e eu, que assim como a maioria, observava mais do que falava. Pensava em me enturmar, mas desistia. Apenas esperava.

Muitas coisas inúteis perambulavam pela minha cabeça. O jogo do Vasco, a guria de verde, o pé menor da minha cadeira. Um monte de merda, mas nada que fosse capaz de estacionar e me prender a atenção.

Enquanto os calouros continuavam chegando, com suas roupas malucas e seus perfumes exóticos, um pensamento um tanto quanto mórbido se instalou na minha cabeça: meses atrás uma onda de terrorismo mirim varreu as escolas e universidades norte-americanas. Alunos armados disparavam seus revólveres (apenas um acessório) contra colegas e professores sem a menor cerimônia. E se por ventura algo assim acontecesse aqui? E se fosse hoje?

A cena não estava tão nítida no meu cérebro. Eu precisava urgentemente de um bode-expiatório para encarnar a personagem do adolescente maluco. Foi aí que ele entrou.

Um mané, de uns 17 ou menos, abriu a porta da sala vagarosamente e entrou com cara de desconfiado. Usava um casaco preto, fechado até o pescoço, e carregava um capacete de motociclista pendurado no braço esquerdo.

Devagar e soturno ele dirigiu-se até o fundo da sala e pôs sua mochila sobre uma carteira. Eu o assistia, disfarçadamente, evitando ser flagrado. Aos poucos minha cena ia ganhando forma.

O rapaz, ainda em pé, deu uma breve olhadela para o restante dos alunos e sorriu maquinalmente com o canto da boca. Feito isso, levou a mão até a bolsa e abriu o zíper. Meu coração acelerava. Imaginei logo tratar-se de um serial-killer, que nos mataria friamente e que, provavelmente, depois estouraria os próprios miolos.

Ele começou a mexer em algo dentro da bolsa. “Só pode ser a arma. Sim é a arma. Ou não. Assassinos desse tipo nunca atiram sem luvas. Eu sei, eu vi no Caso Morel. É, devem ser luvas.”

Batata. De dentro da mochila o rapaz tirou um par de luvas negras, e começou a calçá-las calmamente, como se aquilo fosse o seu ritual sagrado. Meu instinto de sobrevivência alarmou. Eu precisava avisar daquilo a alguém. Em momentos começaria a distribuição de tiros e não iria sobrar um pra contar a história.

Luvas colocadas, o sujeito colocou uma das mãos no casaco e respirou fundo. Seus lábios tremeram. Devia estar nervoso. Perfeitamente compreensível. Talvez fosse a sua primeira vez...

“É agora. Vou fugir enquanto há tempo.”

Saltei da cadeira rapidamente e saí correndo, derrubando os cadernos que encontrava pelo caminho. Ao chegar à porta de saída, no exato momento em que estava prestes a me atirar pra fora da sala, uma vozinha fina e afeminada veio do fundo da sala:

- Jesuuuuis, que frio!

Daniel Magalhães
Enviado por Daniel Magalhães em 13/08/2008
Reeditado em 15/08/2008
Código do texto: T1126073
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