O Cruzeiro do Rei - Giselle Sato


     Espremido entre duas senhoras bem acima do peso, maldigo todos os românticos. Tento passar e levo uma cotovelada, perdi a conta do número de esbarrões. Apesar dos lugares marcados, todos parecem ter perdido a noção dos bons modos.

     Catarina, de vestido vermelho e prateado, parecia uma rainha: -Agenor, não é maravilhoso? É ele, o Rei. Ai que emoção. Eu amo este homem. Quero uma rosa, ele distribui rosas às fãs ao final do show. Agenor, peça mais champagne, está muito abafado. Agenor, dê mais atenção aos nossos amigos. Coisa mais sem graça.

     Tentei me encolher mais ainda, o público acompanhava ''Amada Amante'' aos berros. Minha sogra enxugava lágrimas de crocodilo, entoando o nome do falecido, em um mantra macabro: - Meu Piero ...coitadinho do meu Piero. Sinto tantas saudades!

     Saí de fininho, aproveitei o estado de euforia coletivo e deslizei para fora do grande auditório lotado. Grupos de senhoras e casais de meia idade. Um ou outro jovem com cara de enfado. Eis o cenário do meu calvário. 

     Tudo começou com a compra do bendito jornal de domingo. Catarina nunca lia o jornal, só folheava a parte de moda e a Revista da TV. Em compensação, adorava que eu lesse para ela todas as manchetes. 
Naquele dia um anúncio de meia página chamou-lhe a atenção.
''Grande precursor de shows em alto-mar, pelo segundo ano consecutivo o Rei traz para seus fãs o show mais romântico de sua carreira. A bordo do Costa Elizabeth, a viagem com Roberto Carlos será de Santos ao Rio de Janeiro. O passageiro terá direito a dois shows no pacote de nove noites, cabines com varandas, muitas atividades e atrações.''

     O grito de Catarina, jornal apertado no peito, era o prenúncio da gravidade da situação: - Agenor, Agenor, eu quero ir ao cruzeiro do Rei, vamos comemorar nossas Bodas de Prata a bordo de um transatlântico de luxo. 

- Mas eu não sei nadar, tenho pavor de água, imagine se vou entrar em um navio daquele tamanho. Catarina meu amor, você não está com a festa no clube toda programada?

- Estou sim, por isto mesmo quero ir ao Cruzeiro do Rei. Preciso relaxar e estar linda para a festa.

     Abanei a cabeça, resignado, ela havia resolvido e ponto final. Só me restava o papel de fiel escudeiro, quiçá marido quando necessário. Imediatamente telefonei ao agente de viagens e comuniquei a nova aventura. Alguns minutos depois, veio a nova ordem:
- Agenor, avise ao Miguel que decidi levar mamãe, minhas irmãs também irão conosco. Não é maravilhoso? Mande reservar oito cabines de luxo, não quero porcaria, e mude esta cara de infeliz.

- Porque não vai sozinha? São apenas dez dias, na volta teremos a festa no clube, você nem vai perceber minha ausência.

- E vou dizer o que às minhas amigas? Vou dançar com quem? Não gosto de ir desacompanhada a nenhum lugar. Temos uma imagem juntos, somos um casal e vamos continuar assim.

- Catarina, eu não quero fazer este cruzeiro, tenha dó. O mar me angustia.

- Querido, todos dizem que comprei um marido e que você é um paspalho. Um bibelô e meu brinquedinho. Por 25 anos te sustentei e ouvi as piores piadas da minha família. E você se angustia em navios? Eu vivo isto todos os dias em terra. Nada feito, a angústia é minha, vamos fazer a viagem e fim. Fim de papo, Agenor.

      Consenti com o mesmo gesto bovino, silencioso, ruminando os piores palavrões. O telefone começou a tocar sem parar, todos os amigos queriam aderir ao cruzeiro. No final éramos um grupo de trinta alegres cinqüentões. 

     Envolvida nas compras e preparativos, minha esposa quase não parava em casa. Eram caixas chegando de todos os pontos de Juiz de Fora. Catarina havia decidido que todas as minhas roupas eram inadequadas: - Esta mania de guardar roupas velhas me dá nos nervos. Que horror! Está cada dia mais fora de moda!

     Comprou do calção de banho ao terno do jantar de gala. Sim, haveria um jantar com o comandante. O segundo ponto alto do cruzeiro após o show. 

     O alfaiate marcava os ajustes de acordo com os palpites de Catarina: - Senhor, penso que está um tantinho largo na cintura, tire um dedo e meio e aumente esta bainha, não gostei do caimento.

Pobre homem, tão resignado quanto eu, obedecia sem retrucar, tomando cuidado para não me espetar com os alfinetes, algo solidário com minha infelicidade: - Qual deles o senhor prefere, azul marinho ou preto?

- Azul marinho é melhor, não gosto de preto e não combina com minha roupa. Quero a gravata cinza prata. 

São nossas bodas e vamos usar este tom. Catarina ordenou que a camisa fosse trocada e não me permitiu qualquer opinião. Acatei como sempre.

     Lembrei da minha família, muito humilde, fadada à miséria absoluta se não tivesse tido a sorte de produzir a única coisa bonita da rua do lamaçal. Aos cinco meses fui fotografado para o livro, ''A vida do Bebê,'' do pediatra Rinaldo de Lamare. Na época, a bíblia das jovens mães.
 
     Deste momento em diante, ser bonito abriu várias portas e minha mãe passou a me levar em concursos de beleza infantil. O tempo passou e conheci muitas mulheres generosas e solitárias. Fui um acompanhante de luxo, um ''bon vivant'' sem qualquer aptidão para o trabalho. 

     Conheci Catarina em uma confeitaria da moda. Linda, loura, perfume de jasmim e olhos cor do mar. Rosto de anjo e temperamento dos infernos. 

Caí de amores, perdi as forças, os amigos e finalmente minha família me renegou. Meu pai dizia a quem quisesse ouvir que eu havia vendido a alma ao diabo, meus amigos me apelidaram de cachorrinho de madame.

Em dois meses estávamos casados. Cerimônia de luxo, restrita à nata da sociedade, lua de mel na Europa e uma agenda lotada de banalidades sociais . Só precisei me anular e viver à sombra de Catarina. 
Ir aos eventos, ser cavalheiro e aguardar ansioso a permissão para partilhar seu leito. Nossas noites de amor eram decididas de acordo com o humor da criatura, que nunca estava feliz com nada.

Os anos passaram, o amor murchou como flor de estufa... 25 anos de submissão. 





     O deck estava vazio, a sensação de liberdade no meio do oceano trazia uma paz jamais experimentada. O barulho dos motores, as águas vencidas pelo imenso complexo de aço, o frio gostoso com cheiro de maresia, o encanto da imensidão. 

     Um funcionário parrudo fazia a ronda, verificando se tudo estava em ordem, puxou conversa: - A sensação é de que você está em um gigantesco complexo turístico paradinho, estático... por isso muitas vezes chegamos a esquecer que estamos em alto mar, menos é claro, quando o navio resolve balançar e te deixar mareado. 

- Nos dois primeiros dias, vomitei sem parar e mal saí da cabine. Minha esposa nada sofreu, eu ainda não consegui aproveitar nenhuma refeição.

- Nossa, está perdendo uma das atrações da viagem. Seis refeições diárias e cozinha internacional. Sabe, a tripulação tem cerca de 700 pessoas. O navio não pára, tudo funciona 24 horas. 

- Esta gente não dorme?

- Acho que não. Sempre tem alguma atividade acontecendo e alguém acordado participando. Bom, vou deixar o senhor aproveitar a noite, preciso continuar a ronda. Boa noite!

     O rapaz parecia feliz, todos naquele navio pareciam felizes, eu não conseguia entrar no clima. Talvez a comemoração dos 25 anos, estivesse me deixando louco.

     Minha mente girava em lembranças e situações vividas ao longo da vida conjugal.
A união com a megera. Anos perdidos, decisões erradas, caminho torto, identidade falsa e angustiante. O mar em ondas escuras atraía como mil sereias em coro. As pernas cambalearam até a beirada. Soltei o corpo e perdi o chão. No último segundo, mãos fortes me impediram de consumar o ato.

     Sedado na cabine de luxo ouço o médico explicar que devo ter sofrido terrível vertigem quando me inclinei para olhar as ondas. 
Mentira, todos sabem que desejei a morte, fingem que tudo está bem por hipocrisia.

     Catarina deu um maço de notas ao médico e outro ao segurança de bordo. Pela primeira vez ficou em silencio, parada na porta da cabine, olhar de desprezo estampado: -Vou na frente para disfarçar, vamos comemorar como se nada tivesse acontecido. Seu papel hoje é exibir o sorriso idiota de sempre e entregar a jóia. 

- Mas, amor, tomei um monte de calmantes, estou grogue de sono.

- Melhor ainda, assim não faz nenhuma bobagem. Agenor, se você sair do lugar, se ousar estragar a minha festa, vai morrer na rua da amargura. Entendeu?

O navio começou a jogar mais forte. Chorei, sentido, o pranto dos covardes. Ao longe o Rei começou o segundo show, vesti rapidamente o terno e corri pelos corredores. 

     Parei na entrada do salão, recuperei o fôlego e entrei discretamente.
Sentado à grande mesa do banquete, observei Catarina exuberante, brindar com todos os amigos e parentes a malfadada boda. 

     Ao som de Emoções, entreguei a aliança de brilhantes e trocamos um beijo frio. Neste instante, para surpresa geral, o cantor anunciou nossos nomes e desejou felicidades em nome de toda a equipe do navio e do Comandante.

     Catarina mal cabia em si, percebi que realmente estava emocionada e feliz. Tremia e ria nervosa, sem conseguir pronunciar qualquer palavra. O rosto afogueado, cada vez mais corado, balançava as mãos, gesticulando algo incompreensível. Todos riam. Acostumados ao jeito despojado, ninguém percebeu os olhos da mulher, cada vez mais saltados. A expressão facial aos poucos se transfigurava em agonia.

     Acompanhei todo o espetáculo sem esboçar a menor reação. Lentamente Catarina perdeu os sentidos e caiu no chão acarpetado.
 O espetáculo parou, gritos e pedidos de socorro ecoaram de todas as partes. 

Tarde demais. Um salgadinho engolido às pressas havia posto fim à tirania. Morreu sufocada com o croquete de lagosta, ao som de Amada Amante, a música favorita. Permaneci em estado de choque até que todas as providências fossem tomadas.
Não falei, nem saí do lugar. Obedeci Catarina até o final, e só então me dei conta que finalmente estava livre. Se bem que dizem que certos espíritos são difíceis de se desprenderem da terra, e definitivamente...Catarina é um deles. Algumas vezes me arrepio todinho, parece que

ouço o grito agudo do além, clamando alto meu nome daquele jeitinho que só ela sabia fazer. Minha doce esposa, que descanse em paz, enquanto isso faço planos para um novo cruzeiro, desta vez vou na ala dos solteiros e quem sabe conheço uma viúva? quem sabe....
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Giselle Sato
Enviado por Giselle Sato em 11/08/2008
Reeditado em 01/07/2011
Código do texto: T1123506
Classificação de conteúdo: seguro
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