O paraíso das asas de cera

Quando finalmente levantou a noite já havia perfurado o dia. Pequenos orifícios de luz salpicavam a cortina vinda da rua sebenta. O dia iniciava o seu motor barulhento. Existe algo de possante nos restos da noite, pois mesmo um assobio, pode parecer uma canção eterna. Olhou para a mão suja de mercurocromo e recordou o sonho no metrô. O corpo pesado recusava sair da profundeza onírica, quase sem responder a estúpida relação do paraíso interior com as conjunções da realidade dramática. Logo a luz do dia ofereceria a sua taça cheia de adulação crocitante. Diante do café já era outro homem. O homem do ego de ferro produzido pela sociedade competitiva e originalmente desigual. A falsa mutualidade ganharia o tom costumeiro de moral. Desempenharia bem o seu papel até começar a desenhar nos vestígios do outro uma nova realidade.

Que havia feito até então? Dispersado o centro da coisa em nome de um desejo longínquo. Ficava a lembrança daquilo que sobra após um grande prêmio sonhado. Um vazio repetido experimentado entre um punhado de contos além de porcarias como se fossem diamantes. Talvez por isso andasse em lugares onde as pessoas sequer sabiam que estavam vivas. Enfrentava com a natureza da lógica os vagabundos, os neuróticos das grandes rodas e até os mentirosos pegajosos. Sendo a falsidade a única metáfora adequada para colorir tanta miséria urbana. É incrível como em nome do capital o poder se volta sempre contra os desfavorecidos. Os gráficos das execuções na parede indicavam a guerra. Quem vai lhes dar emprego? Feios, famintos, malroupidos e com os dentes podres. Que estava dizendo? Estava tentando justificar, todos tentam justificar. Se alguém adivinhar algum dilema será como mágica. Para um homem nessas condições vender uma planta a bom preço nada significa. Mas nem isso. Por sobre o direito do dinheiro infeccionado nasce à planta pura, boa e medicinal. Os puritanos preferem o sangue ao sonho. Os filhos da escravidão mais uma vez estão recebendo a ordem inversa da liberdade. Sem nenhum recurso para sonhar, nem sequer o vício. Sem abandono na felicidade repentina após a trégua da escassez. Está aí a receita do ódio.

Era um homem isolado indo ao extremo de dizer que estavam todos errados no enfoque agressivo e reprisado. Puritanos não convivem com as diferenças! Eles apenas sentam para mostrar o caminho reto até provocar o extermínio dos resíduos nos demais. Lutando com a influência “civilizadora” do plano artificial. Totalmente integrados a exploração diversificada pelos novos elementos da ilusão. Mas sem impostos! (Basta ligar o rádio ou a televisão para se ter certeza de que há mais impostores do que impostos). A sociedade industrial sabe que criou o desejo a qualquer custo antes da igualdade de capital. A poderosa ferramenta da desigualdade. Parteja o indivíduo egoísta que luta apenas pela satisfação integral de consumo. E ainda vai a missa como quem caminha isento de um punhado de contos.

A pior droga fora instalada pela linguagem de prestígio. Falsificada pelo modo de ver Ícaro no labirinto. Ícaro empapuçado na graça florida da grande mansarda de onde saem palavras ao vendaval. Depois só há liberdade na imaginação e na mitologia de onde avisam ironicamente os danos. Como se fossemos crianças mentecaptas necessitando da proteção da voz e da imagem alheia. A informação sequer educa. Toma conta de nós por alguns momentos para produzir o inútil espanto. A informação não educa ninguém. A informação some na dor e no desejo. Termina no dia seguinte à nossa ida à praia.