CONVERSA DE BARBEIRO

Nemesio era um barbeiro à moda antiga.Jaleco branco,calça jeans surrada,sapato preto e um costumeiro olhar de tédio.Seu salão,o mais antigo do bairro,apresentava os sinais típicos da desatualização:movimento fraco,paredes com a pintura manchada por infiltrações,aparelhagem antiga e atitude pessimista dos funcionários.

Apesar de tudo isso,Gonçalo só cortava o cabelo com o profissional "sessentão",pois era Nemesio quem conseguia "domar" melhor a "superfície capilar" do professor de português,atividade exercida por Gonçalo com devoção franciscana.

Naquele sábado a temperatura estava ideal,amena,e os ventos do inverno carioca varriam as ruas,suavizando o clima da cidade(outrora) maravilhosa.

Quando o professor entrou no salão,Nemesio estava sentado numa das cadeiras de espera bebendo uma garrafa de água mineral.Apesar de não haver cliente naquele momento para cortar o cabelo,Gonçalo sabia por experiência própria que não deveria ir logo para a cadeira de corte,e sim esperar o chamado do barbeiro.Nemesio o cumprimentou,matou a sede,foi no banheiro,e retornou com uma expressão mais agradável no rosto.Fez um gesto na direção da cadeira,indicando que estava disponível.Gonçalo sentou-se e iniciou o papo que mantinha sempre que aparava suas madeixas:

__E aí,Nemesio?Tudo jóia?

__Tirando o que não presta,sim!

__Lá vem você chorar miséria..

__Não estou chorando não!É apenas força de expressão.Eu não posso reclamar de nada.

Mal acabou de falar,uma moça aparece na porta e pergunta a uma das funcionárias que está pintando as unhas de uma senhora:

__Quanto é o pé?

__Dez reais

__E a mão?

__Sete

__Ih,então eu vou fazer no salão da esquina.Lá é cinco!__e saiu tão abruptamente como entrou.

Nemesio ajeitou os óculos e torceu o pescoço,como se quisesse digerir a raiva que sentia da concorrência acirrada que tirava-lhe fregueses em potencial.Enquanto colocava o avental plástico em Gonçalo,desabafou:

__Veja só você!Ela vem aqui,pergunta o preço apesar da nosso tabela estar pendurada na parede,e ainda diz que é mais barato em outro lugar!É muita falta de linha!Não quer fazer,ou não tem dinheiro,cala a boca e não perturba,não acha?

__É lógico!__concordou Gonçalo,lembrando-se do fato que estava prestes a cortar o cabelo.Não seria boa idéia discordar daquele que estaria com a tesoura na mão.

Os cabelos começaram a ser tosados.Primeiro e por pouco tempo,à seco,depois;um borrifador entrou em ação e facilitou o corte,molhando os fios.A senhora que estava pintando as unhas termina,paga,e vai saindo.Antes de deixar o salão comenta com o barbeiro:

__Nemesio;você sabe o Cataldo?

__O enfermeiro?

__Isso!Ele está mal a beça!

__O que é?

__Nem os médicos sabem!

__Que coisa ...

__O Franz também está balançando!

__O pintor?

__Isso!Parece que a diabetes está descompensada,tá quase cego..

__É;mas vai melhorar,vai melhorar!Um abraço,tchau!__encurta a conversa Nemesio,visivelmente contrariado.

__Tchau!__A senhora agora deixa de vez o local.Nemesio comenta:

__Ô velha agourenta!Toda vez que vem aqui "mata" alguém!Eu até torço para ela demorar,mas de quinze em quinze dias vem fazer as unhas!

__Pelo menos entra dinheiro,não é?__Gonçalo tentou minimizar.

__Atualmente eu prefiro ganhar menos do que me apurrinhar Gonçalo.

O professor sentiu um aumento na força com que o barbeiro pegava em seu cabelo.Decidiu falar de coisas mais agradáveis:

__E o vasco heim?Será que agora com o "Dinamite" vai?

__Tomara!Estou torcendo.

Gonçalo era rubro negro,mas sempre que ia cortar cabelo fingia ser cruzmaltino de coração.Temia que as diferenças clubísticas influênciassem no desempenho de Nemesio.O serviço já estava quase terminado,quando um senhor de uns quarenta e poucos anos mais ou menos usando óculos escuros entra no salão.Ao ver Nemesio trabalhando comenta;sorrindo:

__Nemesio!Há quanto tempo!Você não morreu ainda não "rapaz"?

__Se eu estou aqui é por que não né?

__Eu estou morando em Campinas Há vinte anos e você ainda está no mesmo lugar!

__Pra você ver o meu sucesso.__o tom de deboche na voz do barbeiro era claramente perceptível.

__Eu vou ali comprar cigarro e já volto para a gente colocar a conversa em dia,tá?

__Tá bom.

O homem saiu e Nemesio comentou com Gonçalo:

__Tá vendo?Eu estou neste endereço há tempo demais.Tem uns caras que mudam para outros estados,e quando vem visitar os parentes no Rio ficam assustados ao me encontrar ainda na ativa.É desagradável!Talvez esteja na hora de me mudar daqui.

De novo Gonçalo sentiu as mãos do barbeiro ficarem pesadas.Justamente agora que Nemesio dava o acabamento atrás das orelhas.Gonçalo adorava a forma e o tamanho de suas orelhas.Além disso;precisava delas para escutar.Mais uma vez tentou mudar de assunto:

__E as eleições?Já tem candidato à prefeito?

__Para mim é tudo igual.

__Tem razão__respondeu Gonçalo,aliviado pelo término do corte atrás das orelhas.

Nemesio usou então uma gilete zero quilômetro que retirou da embalagem e cortou os pequenos tufos de cabelo que permaneciam enfeiando os limites do corte.Depois pegou um espelho e mostrou o pé de cabelo perfeitamente aparado.Gonçalo aprovou."Ninguém faz um pé de cabelo melhor que o velho Nemesio",pensou.

Ao sair da cadeira Gonçalo pagou o corte e deu uma boa gorjeta para agradar ao babeiro e garantir que a gilete usada nele fosse sempre zero quilômetro.Despediu-se prometendo que retornaria no mês seguinte.Apertou a mão do velho amigo e ganhou a rua.

No trajeto até o seu carro,passou por um salão que possuía um chamativo letreiro de neon nas cores roxo e amarelo.De repente a porta de vidro se abre,e lá de dentro sai uma mulher esbravejando.Ela envolve os dedos da mão esquerda com um chumaço de algodão.Pode-se ver que há sangue manchando a fibra vegetal.Num misto de raiva e dor,ela berra,observada por todos :

__Isso é um acinte!Vocês são uns carniceiros!Se isso inflamar vai ter processo!

Não demorou muito para Gonçalo reconhecer a mulher.Era a mesma que fora perguntar o preço da unha no salão do Nemesio,minutos atrás.

Enquanto via a "sem cutícula" afastar-se,o professor lembrou daquele velho mais sábio ditado:"O barato quase sempre sai caro".

Entrou no carro,olhou-se no espelho retrovisor e gostou do que viu.Depois,deu a partida no motor e foi para casa.Tinha que tomar banho e arrumar-se para sair à noite.

O céu estava acinzentado,mas lindo.