Um micro para loucos
Primeira cena. Um palco de teatro vazio. Nele se desenvolve uma silenciosa partida de xadrez. Filma-se exatamente o movimento rápido da abertura do Sistema Barkza – que permite um gestual de dança, reforçando o sentido da imagem captada. Uma partida de xadrez em preto e branco. Os dois deitam o rei ao mesmo tempo e cumprimentam-se respeitosamente de pé. Começam a surgir com máscaras e movimentos malabares um grupo teatral para ensaio e começam a instalar um computador em cada lado dos jogadores, tendo ainda a tela branca do cinema ao fundo. Eles continuam no centro desenvolvendo consecutivamente os mesmos movimentos do sistema Barkza. Todos obedecem a movimentos sincronizados quase robóticos.
A – O computador nasceu do xadrez.
B – Acha que algo que tenha nascido do xadrez já terminou?
A – É como fazer teatro sem trama.
B – Tome cuidado com o cavalo.
A – Ninguém entende nada de computador e todo mundo usa.
B – Jogue. É a sua vez.
A – O computador é uma máquina para especialistas vendida no varejo.
B – Está destruindo de vez a leitura para formação de raciocínios. Mas temos que ser modernos e subdesenvolvidos.
Ouvem-se trovoadas e a chuva começa a cair copiosamente.
O jogador A é apresentador de talk show animado onde se apresentam canções ao violão. Ele entrevista os cantores após um pedacinho de cada música. Entre perguntas gerais ele indaga sobre computador.
A – Você compraria uma máquina quando se sabe que é fácil o uso indevido e ainda pode virar um crime?
Cantor – Minha avó larga a feijoada completa indo direto para o computador. Ela não tem a menor noção sobre danos a dados eletrônicos...
A – Palmas para o cantor. (O público aplaude com muito entusiasmo)
Corte.
Segunda cena. O jogador B é um neurótico solitário que joga xadrez, bebe e passa a maior parte do tempo no computador. Cenário: Cadeira, divã e tudo o que representa um consultório psicanalítico. B. está no divã abraçado ao monitor do micro. Diz.
- Doutor! Trouxe o meu self.
Doutor – Vamos analisar. Quer dizer que o seu temor por enquanto é ter passado dados sem permissão...
B. – Um neurótico, doutor, passa sempre dados sem permissão. Depois com o avanço acelerado da tecnologia jamais consigo me manter atualizado. Perdi a pose. Se o computador é a máquina mais inteligente que tenho na casa?
Doutor – Eu não disse nada!
B – Disse sim e ouvi bem...
Doutor – Deve ter sido e-mail espiritual.
C – Sou usuário, não sou hacker, nem espírito de porco. O voyeurismo da internet reflete antes a condição de máquina senão teriam feito a máquina em braille, doutor. É o modelo do sistema que necessita de código e não o usuário.
Ouve-se um coro de vozes repetindo: É o modelo do sistema que necessita de código e não o usuário.
Doutor – Baseia-se no fato de que todo mundo gosta de olhar. Por curiosidade.
C – Outro dia tomei um porre e xinguei um carteiro por e-mail por estar descontente com o maldito e-mail.
Doutor – E o que ele tem a ver com isso?
C – E-MAILS não têm perfume!
Doutor – Releve. Reflita. Haverá arruinado virtual. Subdesenvolvimento virtual. Gente correndo da web com faca na rua para ver se a vida é real através da dor e até olimpíadas morais de puritanismo.
C – Sem contar o cinema apagado utilizado apenas para ensaios e jogos. Nunca mais fui ao cinema e a internet retalhou as fotografias da película. Retrocedeu. Destruiu o vinil e o cd-r. É o fim dos usuários, é a narcografia!
Doutor – (Olhando o relógio e respondendo firme) Já está na hora. Vê se desliga a internet e sai para rua atrás de um belo par de coxas.