O "maravilhoso" mundo do comércio livre de São Mateus
Um morador da Penha, em São Paulo, comprou um carro. O novo veículo tinha tudo. Ar condicionado, injeção eletrônica, vidros e travas elétricas e outras comodidades. Para ficar completo de verdade faltava apenas um detalhe: um cd player. Enfrentar o trânsito de São Paulo é realmente muito complicado sem escutar uma música ou as últimas notícias do dia. Um bom aparelho desses, geralmente, não custa menos que R$350. Como as prestações do carro eram altas, nosso colega da zona leste resolveu apelar para um mercado informal que costuma ter preços mais acessíveis. O local escolhido foi a famosa Feira do Rolo, do bairro de São Mateus.
Quem conta a história é Carlos Bortolotti, também morador da Penha e amigo do personagem, que preferiu não se identificar. “Ele foi na Feira e comprou um cd player, de uma das melhores marcas, por R$ 200. Era inacreditável, veio numa caixa fechada e lacrada, parecia ser muita sorte. Meu amigo estava feliz da vida”, conta aos poucos ,Bortolotti, tentando segurar a vontade de rir. “Quando ele levou o equipamento para instalar é que veio a surpresa”. Nesse momento, todos os esforços para não cair na gargalhada se tornam inúteis, mas o entrevistado continua a descrever o desfecho da história, mesmo com a voz ofegante pelas risadas que não conseguiu conter. “Os instaladores ficaram intrigados com a situação, pois tinham feito todo o procedimento e não funcionava. Foi quando resolveram abrir o aparelho para tentar detectar o problema. No interior do produto tinha apenas uma pedra, um tijolo muito bem encaixado que impossibilitou a todos de perceberem a fraude”, relata.
O fato contado tem seu lado cômico mesmo. Muitas pessoas, entretanto, sofrem com o mesmo tipo de golpe. Pessoas que são enganadas em virtude de uma esperança de comprar algo que em condições normais não poderiam comprar.
A chamada Feira do Rolo de São Mateus é bem conhecida em São Paulo. Basta perguntar a qualquer pessoa, nos arredores do terminal de ônibus do bairro, para saber o local exato onde fica. Uma delas até indaga sobre qual feira exatamente está em questão. “Tem duas. Uma é subindo a rua do mercado. A outra é mais lá embaixo, um pouco mais longe, mas também é perto viu, senhor”, explica um morador das proximidades.
Realmente há duas “feiras” do tipo. Uma, mais modesta e com menos variedades, é realizada aos sábados. A segunda é mais imponente, com barracas que percorrem aproximadamente quatro quilômetros da rua onde é realizada, e acontece somente aos domingos. “A de domingo é melhor”, diz Renato França, morador do bairro de Vila Formosa, que confessou já ter comprado mercadorias dos ambulantes de São Mateus.
Comprar, entretanto, é apenas uma das alternativas. Há também quem se dirige ao local para vender ou até mesmo trocar produtos com os vendedores do comércio informal. O dono de uma das barracas negocia a compra de um celular. “Esse aí eu pago R$40. Não vale mais que isso.” O ambulante fecha o negócio e no mesmo momento coloca a nova aquisição da barraca à venda. Ao ser perguntado quanto custa o mesmo celular a resposta surpreende. “Tá R$120, mas, se o senhor quiser, faço um descontinho.”
Matematicamente, no momento em que o aparelho passou às mãos do ambulante, o produto recebeu um aumento de 200% no valor.
As mercadorias são diversificadas. Muitos investem em revistas e vídeos pornográficos. Uma menina, aparentemente com menos de 15 anos, em uma barraca improvisada no porta-malas de um Brasília, negocia vendas e trocas de fitas cassete do segmento pornográfico. “Eu tenho essa da Vivi, moço. Pode procurar, mas essa só vai achar aqui. Essa mulher é aquela que trabalhava na televisão, com o Sergio Malandro, sabe?”.
Mais adiante, um ambulante chama a atenção dos compradores por possuir um aparelho dvd de última geração. “Tem gravador?”, pergunta um rapaz interessado. “Não sei, amigão. Eu não entendo muito da parte técnica”, responde o dono do aparelho. Enquanto negocia a venda da mercadoria, surge um rapaz com uma caixa e pergunta: “Genil, cadê aquele cara que me vendeu essa porcaria na semana passada? Não veio, não?”. Segundo o cliente, o aparelho que tinha comprado na semana anterior não funcionava. Genil, que sempre está presente com suas mercadorias na “feira”, acalma a vítima. “Fica tranquilo. Ele não veio por causa da chuva. A semana que vem, com certeza, estará aqui.”
Genil conta que, na sua barraca, os produtos são testados antes e na frente do cliente. “Não dou garantia nenhuma. Faço o teste. Se estiver funcionando é porque não tem problema. Ajo dessa forma para depois ninguém aparecer com conversa fiada em cima de mim. Segundo o vendedor, também é muito comum compradores que estragam o produto, por uso indevido, aparecerem na tentativa de trocar. “Tem neguinho que quer dar uma de esperto”, diz.
Provavelmente, nenhum dos que comercializam seus produtos na “feira” passou por treinamentos de técnicas de vendas e muito menos estão antenados nas práticas de negociação que as revistas do segmento empresarial ensinam. A “esperteza” e a necessidade de se livrarem das mercadorias o mais rápido possível, no entanto, é explicita. Um homem colocou em evidência, no chão, o que tinha para oferecer. Dentre as quinquilharias havia algumas peças de automóveis. Ao ser perguntado se a lanterna que estava exposta era de uso do Corsa (Chevrolet), o vendedor respondeu: “Não, não. É do Gol (Volkswagen).” Poucos segundos depois, ao perceber que perdeu a oportunidade de vender a peça, o homem retira o que disse e tenta persuadir. “Opa! Ah, não, me enganei. Essa é do Corsa, sim. É que eu comprei ontem de um amigo meu, mas é quase certeza que é do Corsa.” O possível comprador retruca. “Quase certeza? Deixa pra lá.”
A maioria dos comerciantes declara que as mercadorias eram próprias e colocam à venda porque precisam de dinheiro. Outros dizem que compraram e estão revendendo. Encostadas em um muro, encontram-se bicicletas à disposição para quem se interessar. O ambulante diz que comprou, na loja, há apenas um mês e meio e pretende vender. O detalhe é novamente o preço. Em uma casa de varejos, a mesma bicicleta custa na faixa de R$200, devido a marca e acessórios. Nas mãos do vendedor da Feira do rolo o preço cai para R$90,00. Negociação curiosa para quem pagou o dobro há 45 dias somente.
Não é necessário nenhum tipo de burocracia para se instalar em um canto qualquer e vender o que for. De acordo com os “comerciantes”, quem quiser chegar para vender, é só não tomar o ponto de ninguém e nada acontece. A concorrência é livre. Duas barracas de pastel, uma em frente à outra, dividem os clientes. Aos que preferem lanches, é possível encontrar quem vende cachorro-quente.
Também não existe nenhuma restrição quanto aos produtos que são colocados à venda. Encontra-se desde ferramentas, torneiras e relógios à sapatos e tênis velhos. Um produto, no entanto, era único. Em apenas uma barraca, improvisada no chão e apenas uma lona embaixo, para não sujar nada, pôde ser visto um violão. O dono, “seu” Manoel, disse ter comprado de um amigo que precisava de dinheiro. “Ele só vendeu porque tá passando necessidades. É novinho.” Com exceção dos inúmeros riscos e cordas frouxas, até pode se dizer que o instrumento estava em boas condições, novo é exagero. O interessante é que era de uma marca famosa. O comprador, mais esclarecido que o vendedor, brincou e disse que era da mesma marca que Jimmy Hendrix gostava de usar. Não satisfeito, perguntou se Manoel conhecia Jimmy Hendrix. Questionado, pensou por poucos segundos e, para fingir conhecer sobre rock e agradar o cliente, respondeu. Ah! Sei, sim. Aquele dos Beattles. Tá vendo como o violão é ‘bão’. Faço R$150 pra você.” Detalhes: Nem Jimmy Hendrix foi um beattle e muito menos aquela era a marca que o guitarrista americano usava em seus shows.
Para quem está com pouco dinheiro e achar que pode encontrar alguma coisa interessante na Feira do rolo de São Mateus, duas dicas são importantes. Primeiro, tome cuidado com o que vai levar para casa, pois é provável que, se a mercadoria estiver com defeito, terá de arcar sozinho com o prejuízo. Segundo, evite perguntar o nome dos “comerciantes”. Eles não gostam muito de responder. Por que será?
Ah! Só para não esquecer, teve uma vez que a roda do carro de Giuliana Gregorio foi furtada. O automóvel dela era daqueles em que o estepe fica embaixo da parte parte dianteira. Ao contar para algumas pessoas sobre o infortúnio, Giuliana recebeu a informação que em São Mateus havia uma comercialização de produtos de origens escusas. E não é que ela encontrou sua roda na Feira do Rolo. Foi fácil ter certeza, pois o objeto tinha as iniciais do nome de sua mãe gravadas. Mas, infelizmente, não adiantava nem tentar falar que aquele produto a pertencia. Giuliana sabia disso e teve de recomprar a roda. Pagou para ter seu estepe completo novamente.
Esse "maravilhoso" mundo do comércio livre só poderia estar mesmo em um país como o Brasil.
PS: Os fatos e relatos contidos nesta reportagem são absolutamente reais. A Feira do Rolo acontece todos os finais de semana no bairro de São Mateus, localizado na Zona Leste de São Paulo.