A picanha do ano
 

                   
Tão dizendo aí que eu to ficando com colesterol alto. Caraca... Isso é castigo... Passei a vida toda comendo de tudo. Agora tão me mandando comer só folha. Tudo bem! Se é pra felicidade geral da nação, diga ao povo que como!

Eu passo semanas comendo verde. Já não resmungo - só mujo. Fico ruminando couves e espinafres, e de lambuja como maçã na sobremesa.

Maçã me lembra internação. Toda vez que me internei pra alguma coisa me deram maçã. Aliás, em hospitais eles fazem uma lambança danada com esta coisa de dieta. Imaginem comer sagu. Aquelas bolinhas todas saíam como entravam. Eu sempre odiei sagu! E biscoito de água e sal, então? E sem nada pra acompanhar! No máximo, um chá de erva doce... Quando eu era pequena me davam chá de erva doce pra acalmar os intestinos...

Vinícius estava certo quando disse que somos omnívoros. Amigos, vou confessar: sinto falta de carne, vermelha, com aquela capa de banha, cheia de hormônios dentro.

Essa gente que se diz vegetariana ou que não come carne vermelha compensa com doces e massas. Já viram algum vegetariano que não seja chegado a uma macarronada, nem que seja de espinafre? Os que não comem carne vermelha dizem que sentem pena dos animais, mas matam peixes e galinhas da mesma forma.

Acusam a carne vermelha de causar câncer e alterar o organismo. Tá certo. Eu vejo isso nos sulistas. Todos têm cara de anjos, com aqueles olhos azuis celestiais bem adequados pra quem está a um passo da morte.


Ai, ai... Eu tinha que ter férias de alfafa, certo? Eu como “da alface a verde pétala”, mas me poupem: eu gosto de uma picanha de vez em quando. Nem que seja uma vez por ano. Aí, decidi ir com Josualdo, meu namorado, na churrascaria aqui da rua: “O picanhão”. O nome era sugestivo e eu tava numa carência nutricional de picanhas que dava dó.

No mês passado eu levei o maior esporro do meu endócrino, quando ele analisou os meus exames laboratoriais. Olhem só o que o sujeito me falou: “A senhora vai morrer!”. Perguntei como ele poderia saber isto sem ter uma bola de cristal, só com um papel na sua frente.

Pelo que sei, ele não psicografava nada. Ele disse que meu LDL estava pra lá de Marrakech e me deu umas pílulas aí, que eu tenho que engolir toda hora. Ele disse para eu esquecer de tudo quanto é gordura e nunca mais colocar uma picanha na boca.


Ferrou tudo, mas o que mais me emputecia era o olhar fulminante do cara pra mim. Eu me senti uma criminosa. Tudo bem, ele estava no papel dele, né? A vantagem é que ele disse que eu não ia morrer naquela hora; que ia demorar mais um pouco, porque eu não tinha nenhuma doença grave, mas que a hora da prevenção era justamente agora.

Ok, eu fiz o seguinte: rezei um Pai Nosso e uma Ave Maria antes de ir pro Picanhão. Não é assim que os pecadores fazem? Fazem a merda e depois pedem perdão? Eu pedi antecipadamente. Assim, me apeguei à benção Dele: “Vá e peque, minha filha. E traga uma quentinha pra mim...”. Coloquei na cabeça que eu segurava na mão Dele e fui.
 
Chegando ao Picanhão com Jô, logo senti aquele cheiro de churrasco gordurento. É... Bem do jeito... No centro do restaurante, uma mesa enorme de coisas mil para self-service. Eu queria mesmo era picanha! Escolhi uma mesinha bem no canto. pra ninguém me ver, inclusive Deus. E ficava perto do banheiro - muito adequado para a minha idade. E sabem quem estava justamente diante da minha mesa? Meu médico! Ele, sim, o carrasco (lembra churrasco) de todos os carnívoros!


Quando ele me viu, senti que seu períneo contraiu. Como o meu já estava mais do que contraído, ao  tentar me esconder das forças divinas, não fez muita diferença e me senti na vantagem diante de meu adversário médico.
 
Ele levantou sem graça e foi direto pra o bufê de saladas. Fui junto e o cumprimentei: “Oi, doutor. Também veio experimentar o palmito daqui? Pois é... É do tipo juçara, o melhor contrabando da área. Devia provar o pepino a vinagrete. Uma delícia”.


Ele só não me deu um sorriso diferente do que já tinha, pois seu sorriso já era "amarelo hospital" ao longo de todos aqueles anos que me acompanhava, talvez devido a tanta laranja com beterraba que ingeria.

Então, ele se pronunciou: “Vejo que a senhora está seguindo corretamente a dieta!”. Era uma demagogia estarmos falando de coisas naturebas no centro de um salão aonde rodopiavam maminhas, picanhas, cupins e contra-filés.


Eu me aconcheguei na cadeira, esperando roubar um pedaço da picanha nobre do Josualdo, que abria a boca que nem um filhote de passarinho quando o garçom trazia aquele espeto enorme recheado. Ele nem percebia no meu prato e ficava limpando o sangue do seu com um pedaço de pão. Mais parecia um troglodita.

O tal médico ficava com um olhar meio aviadado para os amigos à sua volta. Os amigos, por outro lado, olhavam incrédulos pra ele, tal era o tamanho do prato de alface, palmito, cogumelo, tomate, alcachofra ect e tal.

Pior era a bebida de acompanhamento: água mineral inglesa. Aquilo realmente era politicamente correto. Como ele me disse que até álcool aumenta os triglicerídeos, tive que pedir um suco de tomate. Só que isto era demais, né? Então, baixinho, pedi para o maitre fazer um Blood Mary pra mim. Ninguém ia notar.


A certa hora, já meio grogue e comendo broto de feijão, enquanto desejava com todas as forças que Josualdo se engasgasse com uma costelinha, eu pedi uma taça de Vodka - que parece água, certo? O médico não ia desconfiar.

O garçom estranhou, pois eu pedi pra não servir a garrafa na mesa. Tudo bem, são coisas de gente da terceira idade, po!


A sobremesa foi deboche. Sabem o que o meu médico pediu? Salada de frutas! Muito adequado mesmo, não acham? Não deixei por menos e, naquela esgrima de olhares fulminantes, mandei que me servissem uvas, muitas uvas.

Dizem que uvas têm um treco dentro que serve para combater os radicas livres, (que eu não sei o que são, mas é coisa radical). Só que eu pedi para as molharem em Cointreau, justificando que era uma receita francesa. Mandei vir mais um pouco do licor numa taça de água. O moço que me servia não entendeu a razão e eu expliquei que taça de licor tinha um buraco muito pequeno e minha visão não era boa. Esta é a vantagem de ter passado dos 50: ninguém se impressiona com suas manias.

Bem, saí muito puta da vida de lá por ter gastp uma nota e só ter ficado de porre. O médico continuou lá, talvez para poder encarar a minha picanha, mais do que nobre, que eu deixei pra ele.

Assim sendo, eu tive que chegar à minha casa e executar a receita da melhor picanha do ano. Afinal, tinha chegado o grande dia de traçar uma e eu não ia deixar barato!
 
Querem que eu passe esta receita? Vão amar...

Assinado: DoNa MenÔ

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Leila Marinho Lage
Enviado por Leila Marinho Lage em 25/05/2008
Reeditado em 15/09/2012
Código do texto: T1004975
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