Ela é assim:
Uma foto como de atriz de cinema da década de 50, em preto e branco; só quem a conhece sabe dos olhos verdes. A beleza retratada nas fotos que meu pai tirava, ela sobre o cavalo, ela com flores, ela debruçada no guarda-corpo, ela sentada no gramado à beira do rio, ela ensinando catecismo aos filhos dos peões da fazenda onde também morava. Mas tanta beleza nunca quis lhe dizer nada.
E veio humilde, tímida e subserviente à cidade grande, e se mostrou uma guerreira, ainda que oculta, ainda que sob a sombra de meu pai: filhos tratados com fabuloso apego de coruja, casa cuidada com esmero de joão de barro, roupas costuradas com delicadeza de beija-flor. E uma fidelidade canina a ele e a seus compromissos do lar.
Era alegre, divertida, brincalhona enquanto a vida lhe sorria; e eu, criança, chorei quando ela teve de usar óculos, uma armação grossa e escura que minimizava o efeito luminoso do verde de seus olhos. Mas ela, enxergando bem ou não, tinha pavor de tudo. Tinha um medo básico da vida que a obrigava a tentar, sempre, nos proteger de algo que nem ela sabia exatamente o que era, tantos eram os motivos do medo. Com o tempo, foi ficando cada vez mais ansiosa, mais temerosa, mais tímida.
Quando atingi a maioridade fiz com que se rebelasse: tiramos juntas RG e carteira de motorista. Eu não a via como modelo, não queria a subserviência, a anulação; pelo contrário, esforçava-me para ser cada vez mais diferente dela: independente, opiniática, rebelde. E talvez ela, em silêncio, queria que eu fosse o que ela teria sido se tivesse tido a chance ou a coragem necessárias: incentivava-me a estudar, não me ocupando nunca das tarefas do lar. Mas queria sim, secretamente, que eu visse (sem que me fosse necessário dizer) que a cama estava desarrumada, a louça por lavar, o pó para ser tirado. E na maioria das vezes se frustrou. Queria que eu fosse aquela de fora e aquela de dentro, mas nunca me disse nada: deixou que eu fosse apenas eu.
Muito tempo depois, quando parecia ter chegado a hora de fruir um pouco a vida que até então havia sido de trabalho e cuidados, precisou sair do anonimato e tomar as rédeas de tudo. Acendeu-se uma luz forte demais para alguém que havia vivido todo o tempo na penumbra. Ainda mais temerosa, e agora já não tão alegre, aceitou o encargo pesado que lhe foi posto às costas, e, com sua fidelidade canina, nunca se queixou. Tornou-se de um dia para outro o cérebro, os braços e as pernas de quem por tantos anos pensou por ela e a carregou no colo: ilumina com seu cuidado quase excessivo quem lhe fez sombra por toda uma vida. Cuida dele com o mesmo apego, o mesmo esmero, a mesma delicadeza de sempre. Uma alma sensível de pássaro num corpo ágil de gato e saudável de touro. E agora, que a vida não mais lhe sorri, ela não tem o que retribuir.
Hoje, à parte o medo (que já não faz mais sentido, pois todos os motivos de medo são agora risíveis perto da realidade), o que mais quero é ser como ela: íntegra, determinada, leal, incansável. Procuro espelhar sua energia infinita para além da figura que projetei para mim, e quando me canso das numerosas jornadas que me cabem - muitas outras além do arrumar, lavar, espanar -, penso nela e me encorajo. Ela, com seus inacreditáveis noventa anos, é assim. Minha mãe.