Graciliano Ramos e o seu olhar sobre o mundo

(Contra-artigo posicionando-se diante das afirmações do crítico Álvaro Lins que afirmava que, em suas obras, Graciliano Ramos não demonstrava interesse verdadeiro por seus personagens.)

Há diversas maneiras de demonstrar estima e interesse por aqueles que nos rodeiam - porque há diversos tipos neste mundo, cada qual com seus limites e capacidades, seus anseios e desilusões... Alguns não sabem demonstrar interesse senão brigando com aquele por quem tem afeição: “Mas como você foi fazer isso?! Parece que não pensa no seu futuro!”; alguns preferem uma boa e franca conversa; outros só sabem demonstrar afeto oferecendo algo (como aquelas avós que nos querem fazer comer como se fôssemos sair viajando por uma semana inteira!); outros ainda, só sabem demonstrar o quanto gostam de alguém revelando-se completamente dependentes ou enchendo a sua paciência (como aqueles garotos que vivem a atazanar a menina que lhes roubam a atenção!); alguns ainda demonstram trazendo preás para os donos famintos; e outros, por sua vez, escrevendo – como é o caso de Graciliano Ramos...

Talvez alguém possa se indignar neste ponto, questionando: “Como você pode rebaixar o assunto a este nível? Estamos aqui discutindo se de fato Graciliano Ramos tinha ou não interesse verdadeiro por seus semelhantes e você vem com toda essa história de avós que dão docinhos ou meninos que puxam cabelos... Como você pode comparar uma ação política de alguém - como pode ser um texto literário - que pensa no futuro de uma parcela da população com a atitude esdrúxula de quem não sabe fazer outra coisa do que demonstrar dependência ao tal ser amado?...” Então responderia que realmente meu interlocutor está certo. O que quero com tudo isso não é comparar duas ações completamente diferentes, seja em termos emocionais e afetivos, seja em termos contextuais ou em quantos mais termos quisermos pôr nessa equação. O que quero com tudo isso é afirmar que as coisas, quando olhadas mais de perto, são extremamente complexas, havendo muitas vezes múltiplas faces com as quais devemos lidar, de tal modo que afirmar peremptoriamente que um autor da grandiosidade de um Graciliano Ramos escrevia apenas para rir de seus personagens, indiferente a eles ou ainda experimentando ódio e desprezo por eles – e por toda a humanidade –, parece-me uma grande e até ofensiva simplificação.

Pus todos aqueles exemplos no início do texto apenas para explicitar que qualquer atitude para o exterior está inevitavelmente interligada com algo que ocorre no interior do indivíduo, algo oculto a uma simples e rápida observação. Um Nietzsche que despreza a sua fraqueza irá desprezá-la em todos os demais, e talvez até sentirá ódio por eles, tudo para não se ver identificado com eles e com sua situação. A dureza que ele impõe para si será a dureza que ele irá impor para toda a humanidade. E talvez o ato mais generoso dele, tomando-o como ponto de partida, seja realmente essa sua dureza com relação à vida, já que foi ela que o constituiu – e a quem ele é muito grato. O que ocorre em meio à complexidade das relações humanas é que o que é bom, doce ou profundo para um pode ser mau, intolerável ou até ridículo para algum outro. Como afirmar, então, do alto o que é uma atenção verdadeira, um grande e nobre interesse ao semelhante? Eis a primeira questão a se problematizar. Um político ganancioso, que faz tudo em nome do seu ego, passando por cima dos demais sem quaisquer escrúpulos, mas que chegando ao poder faz algum bem para dada população – ele teve interesse verdadeiro por eles? Bem, se se perguntar aos próprios beneficiados, eles lhe dirão que sim. Se se perguntar a algum idealista da política, ele poderá lhe responder que tal homem não passa de um cachorro amoral que ludibria a todos que acreditam nele. Um outro exemplo: um homem que teve uma infância absolutamente severa e cheia de privações resolve fazer o completo inverso com seu filho, oferecendo-lhe - por amor - todas as regalias e liberdades. Nem é preciso dizer que tal ato, hoje em dia, seria muito questionado. Agora, no caso de Graciliano Ramos: um homem que, por qualquer motivo que seja (e ele os teve de sobra, é bom que se diga...), se vê imerso em um universo verdadeiramente sarcástico, onde tudo parece ser norteado por alguma lógica perversa, seja a miséria que oprime ou que faz oprimir, seja a forma como está estruturada toda a sociedade com seus valores ultrapassados e arruinados, seja o próprio entrechoque de naturezas diversas no cotidiano (e em menor grau, mas talvez até mais relevante e decisivo – a sua família de Infância); tudo isso, quase que inevitavelmente, faz com que se sinta um certo desgosto pela vida. Quero dizer, anulando aqui o eufemismo: ódio, desprezo, ironia, crueldade, niilismo, etc.

Acontece que o escrever, assim como qualquer outra atividade humana, traz em si as marcas da personalidade daquele que escreve. Ninguém diria que foi casual o fato de Dostoiévski criar Raskólnikov, ou Stendhal Julien Sorel, ou ainda Clarice Lispector G.H. No fundo, só se pode criar algo com o que se possui alguma ligação, seja imaginando-o como igual ou semelhante (em pelo menos alguma característica), seja imaginando-o como tudo aquilo que não se quer tornar, pois em matéria de criação tudo sai à “imagem e semelhança” daquele que cria, apesar de todo o esforço contrário que se possa empreender. Mesmo havendo toda uma riqueza e complexidade humanas em cada romance, há determinadas características que acabam entremeando todo o enredo e toda a caracterização dos personagens, como se fossem um fio condutor utilizado pelo escritor, um eixo em torno do qual tudo gira e parece retornar, para então partir novamente. É este eixo que vai dar a cor e a tonalidade de cada história (e, às vezes, de todas as histórias...).

Portanto, se é verdade que os romances de Graciliano Ramos são secos em matéria de sentimentos, e seus personagens seres baixos, com pouquíssima capacidade de qualquer transcendência, é por que foi tal sensação que mais forte se gravou em sua alma. Ele próprio, certa vez, chegou a confessar que não escrevia da maneira que mais lhe agradava, mas sim da maneira que lhe parecia estar mais de acordo com sua experiência de mundo. Isso me faz lembrar de um trecho de Infância onde Graciliano chega a confessar que...

"Não me importava a beleza: queria distrair-me com aventuras, duelos, viagens, questões em que os bons triunfavam e os malvados acabavam presos ou mortos. Incapaz de revelar a preferência, resignei-me e agüentei as Baladilhas, o Romanceiro, outros aparatos elogiados, que me revolveram o estômago. Cochilei em cima deles, devolvi-os receando que me forçassem a comentá-los. Para mim eram chinfrins, mas esta opinião contrariava a experiência alheia. Julguei-me insuficiente, calei-me, engoli bocejos. Enquanto o dono da casa explanava a literatura encrencada, esforcei-me por entendê-la. Senti medo e preguiça. Não me arriscaria a controvérsia: acomodava-me a presença de uma autoridade." (Infância)

Nesta época ele era ainda um jovenzinho, mas é interessante esse abismo entre as suas preponderâncias literárias dos primeiros anos em relação com toda a forma e conteúdo com que ele acabou se fazendo um grande escritor. É interessante também compararmos os seus escritos literários com as primeiras cartas endereçadas à Heloísa. Cartas de amor, mas de um amor romântico e explosivo. Graciliano Ramos? Sim, Graciliano Ramos – um dos escritores mais secos que existem (?). Isso me traz à mente aquela lei da física em que se sente mais fortemente o frio da água gelada quanto mais quente estiver a sua mão. Talvez, então, se os seus escritos literários são tão secos, revelando uma vida tão exígua e degradada, personagens tão perdidos e descontentes, seja porque a vida, para o próprio Graciliano Ramos, foi-lhe tão fria, mas tão fria, que seria praticamente impossível ele não endurecer o seu coração e mesmo a sua percepção para que esse mesmo coração não se estilhaçasse frente à tamanha dureza. O fato não é que Graciliano vivia em um mundo em que todos fossem uns pobres de uns miseráveis que caminhavam desnorteados pelo mundo, mas que, por uma série de motivos, tal fato se mostrou a ele como algo quase que irrelevante. Em Infância, por exemplo, há alguns personagens bons e dignos, por quem ele até nutria viva simpatia e mesmo gratidão, como é o caso de D. Maria:

"Aquela brandura, a voz mansa, a consertar-me as barbaridades, a mão curta, a virar a folha, apontar a linha, o vestido claro e limpo, tudo me seduzia. Além disso a extraordinária criatura tinha um cheiro agradável. (...) Dominava os receios e a tremura, desejava findar a obrigação antes que estalasse a cólera da professora. Com certeza ia estalar: impossível manter-se um vivente naquela serenidade, falando baixo. A cólera não se manifestou – e explorei diversas páginas." (Infância)

E mais adiante, conclui sobre D. Maria:

"D. Maria representava para nós essa grande ave maternal – e, ninhada heterogênea, perdíamos, na tepidez e no aconchego, os diferentes instintos de bichos nascidos de ovos diferentes.

Nessa paz misericordiosa os meus desgostos ordinários se entorpeceram, uma estranha confiança me atirava à santa de cabelos brancos, aliviava-me o coração." (Infância)

No entanto, após esses minúsculos intervalos de paz, Graciliano tinha que retornar para sua casa, isto é, para sua mãe “de olhos maus que em momentos de cólera se inflamavam com um brilho de loucura”, e para seu pai, aquele pai dos terríveis e injustos casos do “Cinturão” e de Venta-Romba. Aliás, sobre este último episódio, faz-se necessário que se enfatize o quão comovente foi a narração de tal cena, que antes de apresentar pura e simplesmente um ódio ou desprezo, apresenta uma imensa tristeza pela condição humana aqui retratada. Nas palavras do próprio Graciliano: “desgosto, repugnância e vago remorso”, tanto pela fraqueza e limitação dos outros (a “indiferença” da mãe, a “fraqueza” autoritária do pai, a “curiosidade perversa” das crianças, o policial que cumpre seu dever apenas por cumprir...), como também pela sua própria, que assistiu a tudo calado, mesmo sabendo da inocência de Venta-Romba e do exagero sem maiores motivos a que tinha chegado toda a situação. A flácida e boa figura daquele homem, com todo seu espanto e incompreensão nas suas repetidas e reticentes perguntas: “Por quê, seu Major?”, fazendo contraponto com toda aquela constelação de figuras que nada se importavam com o que poderia ocorrer com aquele homem, que nada se importavam da arbitrariedade de todo o desenrolar de algo que eles próprios criaram e que eles próprios poderiam resolver, caso não se mostrassem tão frios e covardes.

"Venta-Romba sucumbiu, molhou de lágrimas a barba sórdida, extinguiu num murmúrio a pergunta lastimosa. (...) Fui postar-me na calçada, sombrio, um aperto no coração." (Infância)

O ódio e o desprezo de Graciliano, acredito, se dirige muito mais a essa fraqueza e limitação, a essa covardia e mesmo estupidez, a essa indiferença e crueldade generalizadas que havia, em certo grau, tanto nele como nos demais – sentimentos que, por assim dizer, faziam a vida de todos extremamente mais seca e mais miserável. Um desprezo ao desprezo, um ódio ao ódio, uma crueldade a crueldade e a tudo a que isso leva: “absoluta negação e destruição”, nas palavras do crítico Álvaro Lins. Vendo a situação por esse modo, pode-se entender talvez a escrita como um meio de se redimir de tudo isso.

"A faixa vermelha desaparecera, diluíra-se no azul que enchia o céu. Sinhá Vitória precisava falar. Se ficasse calada, seria como um pé de mandacaru, secando, morrendo. Queria enganar-se, gritar, dizer que era forte, e aquilo tudo, a quentura medonha, as árvores transformadas em garranchos, a imobilidade e o silêncio não valiam nada. Chegou-se a Fabiano, amparou-o e amparou-se, esqueceu os objetos próximos, os espinhos, as arribações, os urubus que farejavam carniça. Falou no passado, confundiu-o com o futuro. Não poderia voltar a ser o que já tinham sido?" (Vidas Secas)

Uma redenção repleta de ambigüidades, toda complexa e intrincada, onde se emaranha todo um conjunto muitas vezes contraditório de sentimentos e desejos, já que muito do escrever em Graciliano aparece como mágoa reprimida, ódio sufocado e uma profunda desesperança – mas uma desesperança que ainda guarda em seu interior algum germe de esperança, ou, melhor dizendo, de algo que tenderia a esse sentimento, mesmo que fosse sem fundamento algum, afinal, se todo o universo parece conspirar contra uma solução para a vida humana, ainda restam alguns momentos nos quais a vida parece retomar a cor e em que os seres (tanto humanos como animais) convergem para um ponto em comum, para alguma harmonia, mesmo que mínima, em meio a todo esse intrincado destituído de sentido que poderíamos chamar de vida humana (em Graciliano Ramos).

"Desde esse dia tenho recebido muito coice. Também me apareceram alguns sujeitos que me fizeram favores. Mas até hoje, que me lembre, nada me sensibilizou tanto como aquele braço estirado, aquela fala mansa que me despertava.

- Obrigado Rosenda.

(...) chorava por causa da xícara de café da Rosenda..." (Infância)

"Miudinhos, perdidos no deserto queimado, os fugitivos agarraram-se, somaram as suas desgraças e os seus pavores. O coração de Fabiano bateu junto do coração de Sinhá Vitória, um abraço cansado aproximou os farrapos que os cobriam." (Vidas Secas)

Esses personagens de Vidas Secas são incrivelmente oprimidos, seja pelo clima no qual se encontram, seja pelas relações de poder que os rodeiam (o soldado amarelo, o proprietário da fazenda), seja ainda pela própria brutalidade à qual foram reduzidos com o passar do tempo e de suas experiências. E, em certo sentido, quem de nós não se enxerga aqui, não em termos de forma (como retirantes), mas de conteúdo? Quem que não é também limitado por certas “arbitrariedades”, ora estando no mundo ao redor, ora estando em nós mesmos, que nos impedem muitas vezes de fazer aquilo que em algum grau desejávamos? Se fosse para arriscar algo sobre a obra de Graciliano, diria que ele não faz nela um culto ao nada, pregando uma filosofia da completa destruição, mas sim que ele aponta, da forma como pôde, tudo o que pode levar a tal sensação de mundo – e oferece a sua contribuição, mesmo que involuntária (nunca se sabe...), de como lutar, na medida do possível, contra toda essa adversidade. De fato, Paulo Honório e Luís da Silva, por caminhos opostos, um pela “ascensão” e o outro pela “decadência” moral, chegaram ao mesmo ponto, ao mesmo sentimento de invalidade da vida. Mas por quê? O que fez com que um Luís da Silva se tornasse o que se tornou, tendo a necessidade de cometer um crime para se auto-valorizar, torturando-se sadicamente com os ruídos das relações sexuais de sua vizinha, e não um Graciliano Ramos – mesmo que este ironizasse a sua própria condição? E a respeito de Paulo Honório, personagem fabuloso por sua imensa vontade e determinação em dobrar o mundo ao seu redor, saindo de uma posição miserável para alcançar a de proprietário da fazenda São Bernardo: foi forte o suficiente para submeter o mundo inteiro, mas falhou terrivelmente em dominar seus próprios impulsos. Sabia do valor de Madalena para ele. Mas deixou que seu sentimento de posse, seu ciúmes louco e descontrolado, conduzisse Madalena para o seu trágico final, para só no fim de sua vida, após ter arruinado tudo com suas próprias mãos, compreender o porquê daquilo tudo ter chegado aonde chegara. Eis a sua própria tragédia – e que também pode ser a nossa enquanto estivermos vivos.

"Creio que nem sempre fui egoísta e brutal. A profissão é que me deu qualidades tão ruins. (...) Foi este modo de vida que me inutilizou. Sou um aleijado. Devo ter um coração miúdo, lacunas no cérebro, nervos diferentes dos outros homens. E um nariz enorme, uma boca enorme, dedos enormes. (...) Conforme declarei, Madalena possuía um excelente coração. Descobri nela manifestações de ternura que me sensibilizaram. E, como sabem, não sou homem de sensibilidades. É certo que tenho experimentado mudanças nestes dois últimos anos. Mas isto passa." (São Bernardo)

"As amabilidades de Madalena surpreenderam-me. Esmola grande. Percebi depois que eram apenas vestígios da bondade que havia nela para todos os viventes." (São Bernardo)

Contudo, uma compreensão não da completa arbitrariedade, mas uma compreensão historicamente determinada. “Creio que nem sempre fui egoísta e brutal”. O que é tal frase senão uma luz de esperança – não para Paulo Honório, mas para a humanidade em geral, para todos os que lerem São Bernardo, para todos os que viverem posteriormente e, quem sabe, encontrassem um mundo menos injusto ou opressivo (como marxista que Graciliano era...)? Se ele acreditava nos homens é algo que dificilmente saberemos, mas que ele mostrou certas luzes a guiar o nosso comportamento, isso ele mostrou – ou, ao menos, revelou muito daquilo que torna a vida “despojada” de poesia e sentido, como é, em grande medida, a forma e o conteúdo de seus romances. E mesmo levando em consideração tudo o que há de mais opressivo e degradante, deixou implícito em meio a todo esse universo de secura, um motivo para se viver, um motivo para agir, por mais desolador e mesmo fatalista que ele possa parecer às vezes.

"Lembrou-se dos filhos, da mulher e da cachorra, que estavam lá em cima, debaixo de um juazeiro, com sede. Lembrou-se do preá morto. Encheu a cuia, ergueu-se, afastou-se, lento, para não derramar a água salobra." (Vidas Secas)

A tragédia de Paulo Honório não foi a vida em si. Para esta ainda tinha ele alguma salvação. A sua tragédia foi ele ter destruído a pessoa que passou a dar sentido (ou algum sentido) a sua vida.

"- Estraguei a minha vida, estraguei-a estupidamente.

(...) E eu vou ficar aqui, às escuras, até não sei que hora, até que, morto de fadiga, encoste a cabeça à mesa e descanse uns minutos..." (São Bernardo)

Quando penso em Graciliano Ramos, vem-me a imagem de Fabiano. Afinal, o que é Graciliano Ramos (ou, melhor dizendo, uma boa parte dele) senão esse “cabra” preso no ciclo de escrever, escrever e escrever, fugindo da seca e só encontrando mais seca – e quando dá sorte, a sombra de um juazeiro, um riozinho quase que totalmente seco, um preá para não morrer de fome?... E por mais que ele queira, sabe que jamais conseguirá acabar com a seca, ou matar todas aquelas aves que cobrem o mundo de penas e esvaziam o açude. É tão impotente quanto Fabiano, com a grave diferença que nem sequer tem como consolo a crença em algum “pensamento mágico” e supersticioso. Tem profunda consciência que seus tiros de espingarda são pouco para pôr fim a todas aquelas aves, quanto mais em impedir a seca que está sempre a o ameaçar – a nos ameaçar. E o que é Graciliano senão esse “cabra” imperfeito e limitado, mas que luta bravamente contra a sua própria imperfeição – contra a imperfeição do mundo? Foi Carpeaux que disse que se pudesse Graciliano suprimiria o seu romance inteiro, o mundo inteiro, não foi? Pois é verdade. E talvez até neste ponto Graciliano tenha algo em comum com Fabiano. A imensa dificuldade de comunicação, de fazer-se compreensível e razoável. Por mais que se esforçasse, Graciliano tinha para si que nunca estaria perfeito, e muitas vezes alimentava até uma sensação completamente negativa por seus textos. Não adiantava alguém elogiá-lo, pois a desconfiança surgiria: “Será que estão zombando de mim?” – assim como acontecia com Fabiano entre os homens da cidade...

"Começaram a discutir em voz baixa uma passagem obscura da narrativa. Não conseguiram entender-se, arengaram azedos, iam-se atracando. Fabiano zangou-se com a impertinência deles e quis puni-los. Depois moderou-se, repisou o trecho incompreensível utilizando palavras diferentes." (Vidas Secas)

O limite entre ser um homem e ser um animal...

"- Você é um bicho, Fabiano.

(...) Fabiano, você é um homem, exclamou em voz alta." (Vidas Secas)

Ou, melhor dizendo, entre a humanidade e tudo aquilo que a destrói, entendendo humanidade aqui não como algo próprio dos homens, mas como algo que estes deveriam constantemente buscar, pois não é nada mais do que a esperança de algum mundo melhor, de algum mundo mais belo. E se este não passa de uma grande ilusão, de uma grande inocência, tal qual o sonho de sinhá Vitória no último capítulo de Vidas Secas, que se busque para si mesmo – para a sua própria (e pequena) salvação e daqueles que lhe rodeiam, dando-lhes a oportunidade de pelo menos viver mais alguns dias, mesmo que sofridos e absurdos, mas criando a possibilidade de algum momento de legítima felicidade, por menor e mais ínfima que ela seja.

"Iam-se amodorrando e foram despertados por Baleia, que trazia nos dentes um preá. Levantaram-se todos gritando. O menino mais velho esfregou as pálpebras, afastando pedaços de sonho. Sinhá Vitória beijava o focinho de Baleia, e como o focinho estava ensangüentado, lambia o sangue e tirava proveito do beijo."

"Aquilo era caça bem mesquinha, mas adiaria a morte do grupo. E Fabiano queria viver. Olhou o céu com resolução. A nuvem tinha crescido, agora cobria o morro inteiro. Fabiano pisou com segurança, esquecendo as rachaduras que lhe estragavam os dedos e os calcanhares."

"(...) Baleia queria dormir. Acordaria feliz, num mundo cheio de preás. E lamberia as mãos de Fabiano, um Fabiano enorme. As crianças se espojariam com ela, rolariam com ela num pátio enorme, num chiqueiro enorme. O mundo ficaria todo cheio de preás, gordos, enormes." (Vidas Secas)

“A atenção é uma forma alta de generosidade” – Simone Weil

Bibliografia:

• Ramos, Graciliano – São Bernardo – Editora Record – 46ª edição

• Ramos, Graciliano – Angústia – Editora Record – 52ª edição

• Ramos, Graciliano – Vidas Secas – Livraria Martins Editora – 30ª edição

• Ramos, Graciliano – Infância – Editora Record – 23ª edição

• Lins, Álvaro – Valores e Misérias das Vidas Secas

• Carpeaux, Otto Maria – Visão de Graciliano Ramos

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